sábado, 23 de maio de 2009



23 de maio de 2009
N° 15978 - CLÁUDIA LAITANO


O quadro da normalidade

Quando faltava pouco menos de uma semana para ela completar um ano, o negócio aconteceu. Poderia ter sido um mês antes, ou três meses depois, que tudo continuaria “dentro do quadro da normalidade”, mas foi com uma precisão cronológica espantosa que minha filha começou a andar exatamente conforme as instruções do manual – às vésperas do primeiro aniversário.

Caminhar, mais até do que falar, é uma espécie de inauguração oficial da capacidade humana de explorar e modificar o mundo, uma conquista saudada por todos em volta como um sinal da natureza de que tudo marcha exatamente como foi programado – e a infância é a única época da vida em que os sinais de que a natureza está seguindo seu curso são sempre recebidos com alegria.

(Esta semana, comprei meu primeiro par de óculos para perto, mas ninguém veio me saudar pela presumível conquista de sabedoria e experiência...)

Podemos atribuir a esses pequenos ritos de passagem – os primeiros passos, a primeira menstruação, os primeiros óculos para perto – a carga simbólica e cultural que quisermos, mas a protagonista silenciosa é sempre a natureza, comandante generosa (ou implacável) de boa parte das transformações pelas quais passamos ao longo da vida.

Você visita uma exposição como Corpo Humano (ainda em cartaz em Porto Alegre até a semana que vem) e se surpreende imaginando as milhares de chances que tudo tem para dar errado – quantos vasinhos para entupir, quantos ossinhos para quebrar e tecidos para absorver doenças inimagináveis.

A partir de uma certa idade, convivemos com o corpo como o Japão com suas placas tectônicas: tentamos levar a vida normalmente ignorando que tudo pode virar de cabeça para baixo de uma hora para outra, sem que ninguém tenha a gentileza de nos preparar para o abalo com alguma antecedência.

Talvez seja por isso que tantas culturas celebram o lado previsível da natureza – crianças caminhando perto de um ano, meninas menstruando perto dos 12, meninos mudando a voz por volta dos 13.

Como os primeiros homens que olhavam para o céu sem entender exatamente por que o sol desaparecia e sempre voltava no dia seguinte, celebramos a alegria singela de perceber algumas constantes em meio a um universo inteiro de variáveis imprevisíveis.

O tratamento contra o câncer de Dilma Rousseff tem sido tratado majoritariamente como fato político – e talvez isso seja inevitável, dada a dimensão que a ministra tomou no cenário das eleições de 2010. Mas ninguém que convive ou conviveu com essa doença consegue acompanhar o caso com a frieza de quem abstrai o fator humano dos fatos políticos.

As sessões de quimioterapia, as dores nas pernas, a peruca, o enigmático diagnóstico “dentro do quadro da normalidade”, cada um desses detalhes divulgados sem muita solenidade nas páginas de cobertura política do jornal são pequenos grandes dramas que assumem toda uma outra dimensão para quem já viveu essa história de perto.

Acompanhando a jornada de alguém que luta contra uma doença grave, mesmo que essa pessoa seja uma figura pública, distante de nós, é inevitável nos sentirmos um pouco mais frágeis e pequenos diante da natureza. Como quem assiste pela TV à coreografia furiosa de um tufão.

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