sábado, 30 de maio de 2009



31 de maio de 2009 | N° 15986
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES (interino)


Vicky, Cristina e Daiane

Ouvi na sexta-feira num café aqui perto da Redação. Um guri disse para o colega ao lado: hoje em dia, é preciso saber de tudo. Era um trainee, com jeito de trainee, corte de cabelo de trainee.

Trainees falam com as duas mãos enfiadas nos bolsos da calça e sabem tudo. Eu sei regra de três composta, que poucos sabem, mas isso vale pouco hoje em dia. Sei fazer quase tudo num computador. Uso o mouse com as duas mãos.

Mas não domino um celular que comprei há dois dias porque o meu ficou mudo, depois de um ano de uso, e o modelo saiu de catálogo. Celulares se renovam, no design, nas configurações, nos teclados e se transformam em máquinas enigmáticas para quem tem mais de 50 anos. O meu tem visor rosa-choque, e a moça assegurou que é unissex. Não basta ser uma esfinge, é uma esfinge rosa.

Na loja, a moça pediu que eu testasse o aparelho, que ligasse para alguém. Liguei para um amigo e avisei, meio empolgado: estou aqui comprando este celular e telefono neste momento para fazer um teste. Recebi os parabéns do amigo e recolhi todos os olhares da loja. Celular é uma máquina de propagar bobagens e pensamentos em voz alta. Recolhe-se o que se pode de quem conversa por perto, os fragmentos, as personagens, os apelos, as angústias, os silêncios.

Há seis anos, quando ainda sentia estranhamento com essas conferências públicas de intimidades, caminhava pela Rua Lobo da Costa e um rapaz andava logo adiante falando ao celular. O moço disse: Daiane, jura que tu vai ser sincera, jura. O rapaz andava devagar. Na ultrapassagem, ouvi a segunda frase, uma interrogação dolorida: Daiane, tu voltou pro André? E o moço insistiu: tu voltou pro André, Daiane?

Na esquina da João Pessoa, em marcha mais lenta, constrangido e atraído pelo drama público do rapaz, fui para um lado e ele para outro. Desci a João Pessoa, e o guri grandão subiu a rua levando junto as próximas frases e o mistério. Eu nunca mais saberia se Daiane voltara para André.

Uns dois anos depois, esperava uma vaga no estacionamento do Shopping Praia de Belas, e uma moça descia do carro. Falava ao celular. Dizia: para com isso, cara, eu não tenho nada, nada, nada com esse André. Temi que uma vaga se oferecesse ali por perto.

Queria ficar e queria sair, me sentia de novo constrangido e atraído por uma conversa da qual conhecia o início. Era Daiane, claro. Morena, pequena, inquieta. Eu ouvia ali, dois anos depois, a frase que o rapaz deve ter ouvido lá na Lobo da Costa. Ou tudo se repetia, e Daiane passara todo aquele tempo explicando que não tinha nada com André.

A moça se foi e desde então, quando ouço um jovem falando alto ao telefone, me flagro, ainda constrangido, tentando identificar o terceiro personagem. Mas o roteiro, que asseguro ser real, em nome de todos os que já se submeteram aos vexames acionados ao celular pelas inseguranças do amor, ainda é muito incompleto. Conheci o primeiro personagem, o rapaz que temia André, mas não sei seu nome. Estive ao lado de Daiane. Mas nunca encontrei André.

É quase certo que nunca vou encontrá-lo e sei que, contando essa história, posso provocar a vaidade de farsantes. Quantos Andrés sairão contando que chamaram, sim, Daiane de volta e a dispensaram depois, por piedade ou enfaro, para que retornasse chorando ao moço da Lobo da Costa. Eu torço pelo rapaz, por sua perseverança, pela capacidade de compartilhar em voz alta a dúvida que o atormentava e por ter concluído que ele é de fato o melhor para Daiane.

Só agora conto essa história porque comprei um celular novo e porque assisti tardiamente, na semana passada, a Vicky Cristina Barcelona. O filme nos põe diante do dilema de escolher quem fica com quem, mesmo que às vezes ninguém fique com ninguém. Claro que não vou contar o final, mas fiz minhas escolhas e nenhuma combinou com o desfecho.

Meu final era previsível, com tudo bem amarradinho, como na novela das oito. É difícil ser Woody Allen. Penso em Vicky e Cristina e penso com quem estará Daiane, enquanto continuo desconfortável com esse visor rosa. Às vezes, nem a cor da tela de um celular é como esperamos que seja. Mas a moça da loja me disse que a gente acaba se acostumando.

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