sábado, 16 de maio de 2009



16 de maio de 2009
N° 15971 - CLÁUDIA LAITANO


Boatos

Boato bom, no sentido de eficiência, é aquele que gruda de tal forma que nunca mais você consegue lembrar da pessoa sem invocar imediatamente o suposto acontecimento.

Mesmo que o sujeito pise na Lua ou descubra a cura do câncer, o incidente bizarro, que expõe (ou inventa) uma fragilidade moral ou uma insuspeitada inclinação por alguma prática não convencional, impõe-se diante de todas as virtudes como um rochedo incontornável no meio do caminho.

Em alguns casos, o boato é tão poderoso, que fica mais famoso do que a própria vítima – a cenoura ainda será lembrada quando ninguém mais souber quem era mesmo aquele ator do qual contavam aquela história que todo mundo sabe.

A internet de certa forma banalizou (democratizou?) o boato. Hoje em dia, qualquer um pode ser difamado, “emboatado”, em segundos e em escala planetária, sem que seja necessário qualquer tipo de projeção pública para dar fôlego à disseminação da maledicência.

Invertendo a lógica que vigorava na era analógica, quando antes de ser amplamente difamada a pessoa deveria tratar de conquistar alguma fama para ser perdida, hoje é a difamação em si que torna algumas pessoas famosas – pelo menos por alguns minutos.

(E o fato de o marketing ter escolhido o termo “viral” para designar a multiplicação em escala exponencial de uma informação, falsa ou verdadeira, sugere que muitas pessoas podem ter mais medo de serem atacadas por um boato do que pelo vírus de uma gripe desconhecida.)

Na época em que o cantor Simonal (1939 – 2000) começou a entrar em desgraça, no início dos anos 70, espalhar um boato não era tão simples como é agora, o que apenas ressalta a eficiência do processo de desconstrução do cantor – que no final dos anos 60 chegou a rivalizar com Roberto Carlos em termos de popularidade e acabou morrendo no ostracismo quase absoluto.

O documentário Simonal – Ninguém sabe o Duro que Dei, que estreia em Porto Alegre até o final do mês, tenta reconstituir as circunstâncias que levaram um dos cantores mais idolatrados do país a ser virtualmente expelido do mundo artístico depois que o boato de que ele teria sido informante do regime militar multiplicou-se em escala continental – não apenas no boca a boca, mas também com o apoio de jornais e revistas que não se entregavam muito apaixonadamente à tarefa de confirmar informações antes de publicá-las.

O filme não chega a limpar a barra do cantor completamente. Fica claro que é pouco provável que ele tenha dedurado colegas, ao mesmo tempo em que é quase certo que tenha mantido relações perigosas com gente que frequentava os porões da ditadura a trabalho.

Eram tempos extremos, e as informações circulavam de forma errática e limitada, o que ajuda a entender o impacto de um boato desse tipo, mas não diminui sua dimensão trágica – histórias de ascensão e queda igualmente vertiginosas são sempre arrebatadoras, em qualquer circunstância.

O documentário tem ainda o mérito de apresentar um grande artista para quem não era nascido na época em que o boneco “Mug da Sorte”, mascote do cantor, fazia sucesso entre as crianças.

Mas o mais perturbador dessa radiografia de um linchamento moral é mostrar que para jogar pedra na Geni nunca faltam voluntários. O difícil é encontrar gente que a defenda depois que o apedrejamento começa.

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