quarta-feira, 6 de dezembro de 2023



06 DE DEZEMBRO DE 2023
MÁRIO CORSO

O louco da casa

Daniel não sabia por que veio à consulta. Queria ser escutado, ter uma experiência de análise. Tinha uma vida estável, tranquila, produtiva. Em resumo, alcançou aquilo que chamam de sucesso.

Psicanalistas costumam brincar que não há pacientes felizes. Um exagero, é claro, mas um pedido de tratamento é geralmente acompanhado de um sofrimento atual ou pretérito.

No começo, nada indicava problemas. Era a história de uma vida interessante, rica de experiências. Levamos um tempo até chegarmos a um ponto, que agora parece óbvio, mas que ele não sabia o quanto lhe marcara. Sua adolescência foi tensa com a família, não diferente de tantas incompreensões, enfim, o habitual choque de gerações.

Com ele aconteceu algo singular: uma breve e desnecessária internação psiquiátrica. Possivelmente por castigo, seus pais não aguentavam seu jeito diferente de ser. Ele questionava com veemência religião, modo de vida, hierarquia, valores. Veja, não envolvia nem identidade sexual, nem drogas, mas a década de 80 não era fácil para ninguém. Essa trapalhada trouxe junto um diagnóstico sem sentido, que retirou sua credibilidade dentro da família, no sentido amplo, entre avós, tios e primos.

Em resumo, o complexo de Cassandra. Não é um conceito, apenas uma maneira de nomear casos assim. Cassandra foi uma princesa infeliz. Apolo atravessou seu caminho, um deus grego poderoso, mas trapalhão e canalha com as mulheres. Ela não foi totalmente inocente, tentou enganá-lo para ganhar o dom da profecia - algo não recomendável, tratando-se de deuses. Seu castigo foi severo, um feitiço tirou sua voz pública. Nada do que ela dizia - e era sempre verdade, pois era profetisa - era levado em conta.

Quando uma família cassa a voz de um dos seus, produz um sofrimento descomunal. Para Daniel, o problema não foi a internação em si - em sua rebeldia, ria e a mencionava entre os seus feitos. Sofreu pelo longo período em que suas opiniões não eram levadas em conta, por ser o louco da casa. Isso o abateu, sem que ele percebesse o quanto. Foi preciso mais de década e sucesso fora de casa para ser escutado.

Anos depois, o pai ensaiou um pedido de desculpas. Daniel retrucou que era tarde, pois o avô - pai do seu pai - morreu certo de ter um neto louco. Quando se deu conta da resposta cruel, tentou remendar, mas as palavras não voltam. Certos erros perpetuam-se, repetindo o silêncio e a dor.

MÁRIO CORSO

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