quinta-feira, 28 de dezembro de 2023


28 DE DEZEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Tenho uma filha de 30 anos

Em toda homenagem de aniversário, você mal fala do outro, mas de si: do quanto ele melhorou a sua vida, do quanto você mudou por ele, do quanto você se tornou mais alegre, mais disposto, rejuvenesceu, aprendeu tarefas novas, foi para lugares diferentes, assimilou hábitos saudáveis, evoluiu o comportamento.

No fim, ninguém fica sabendo de quem está se falando. O agradecimento é direcionado inteiramente ao autoelogio, numa propaganda pessoal de como é inesquecível conviver com você.

Coloca fotos dos dois, de cenas de amor e amizade entre vocês. Tem que aparecer sempre. Não consegue celebrar uma biografia de modo incondicional e altruísta.

Você se vende e se compra a partir do aniversariante. Transforma-o em seu refém para redigir a sua própria carta de recomendação. Existe uma advertência implícita na mensagem: não fique longe de mim, porque nunca encontrará alguém como eu.

Somos contaminados pelo narcisismo. Não se trata de uma atitude proposital. É um sintoma de nossa época egoica, de nossa cultura da imagem. Minha filha completou 30 anos. Meu primeiro impulso seria contar que estou assustado porque já sou pai de uma filha de 30 anos. Entende qual é a cilada?

Nem devo dizer que ela revisa meus textos e livros - se você não encontra erros, a culpa é dela. Ou que analisa os meus aforismos sob a ótica da linguística. Porém esqueça isso. Ainda estarei caindo na armadilha da vaidade e me colocando no centro da oferenda. 

Pretendo detalhar quem é Mariana, sem querer roubar um pouco do seu brilho para mim. É disciplinada. Não mexe nos seus horários. O que ela marcou não cancela, mesmo que seja para cumprir uma tarefa caseira. Ela pode avisar que faxinará a sua casa. A faxina é sua prioridade inalterável. Nenhum convite a fará desistir do encontro consigo mesma.

Mariana cultiva existências paralelas. Você não será capaz de reduzi-la a um único perfil. Ela escreve contos, mas ainda não publicou o seu livro. Ela monta colagens com recortes de jornais e revistas, mas jamais mostrou seus trabalhos. Ela compõe e canta, mas não disponibilizou nenhuma canção nas redes sociais.

Não pense que ela desperdiça seus talentos, pois já cometi essa gafe. Ela tem consciência de quando estará pronta. Conhece o seu ritmo. Não é perfeccionismo, e sim exigência de autenticidade. O que ela mais busca é ser sincera em sua arte. Abomina a ideia de realizar algo em que não acredita, para agradar ou corresponder às expectativas.

Ela se sente estimulada pelos desafios. Formada em Letras pela UFRGS, com mestrado em andamento, dedica-se à tradução de autores latino-americanos. Pode levar uma semana inteira para encontrar o equivalente apropriado para uma palavra em espanhol, assim como pode converter várias páginas em um único dia. Não sofre com a cobrança de tempo perdido, porque entende que sempre está aprendendo.

Mariana se veste destacando um detalhe do conjunto: talvez seja a estampa divertida de uma camiseta, ou um cinto brilhante, ou uma meia colorida, ou um sapato com fivelas. Ela coroa o secundário. Sorri para dentro quando alguém nota.

Sua noção de família se baseia nos irmãos. Jamais vi uma pessoa cuidar tanto deles. É um caso de guarda compartilhada entre ela e os pais. Ultimamente, anda sonhando com as suas três calopsitas que morreram. Eu imagino o tamanho da saudade, a falta de dar aquela coçadinha na cabeça delas.

Só que a ligação com os pássaros ia muito além da companhia. Há um parentesco de comportamento. O que as calopsitas mais gostam é de privacidade. Como Mariana. É difícil entender que uma pessoa ou uma ave quieta nunca está sozinha. Eu peço desculpa pela invasão de seu espaço.

CARPINEJAR

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