16 DE DEZEMBRO DE 2023
LEANDRO KARNAL
Como muitos casais, os anos de convívio tinham produzido atritos entre Aparecida e Ricardo. As crises começavam sobre o tema gastos, continuavam no campo da limpeza da pequena casa e seguiam aceleradas quando tratavam dos procedimentos em relação à educação do filho.
No primeiro triênio, a harmonia tinha reinado ao lado do desejo. Acertaram-se na sala e na cama. Acarinhavam-se. Incendiavam-se. A sogra do marido reconhecia que eles se pareciam com a música Côncavo e Convexo, de Roberto Carlos: "Cada parte de nós tem a forma ideal/ Quando juntas estão, coincidência total/ Do côncavo e o convexo/ Assim é nosso amor no sexo". Como um jogo de Lego, a peça de um tinha encontrado o perfeito encaixe no outro.
Veio o pequeno Jorge. A alegria renovou-se, mas... O desemprego de seis meses do marido trouxe a erosão das poucas economias. A casa foi assaltada, para piorar o quadro de amarguras. Quem se havia esquecido de trancar bem todas as portas? A imprecisão da culpa envenenou a relação.
Pouco dinheiro e um filho que demandava coisas combinavam-se para arranhar a beleza original da dupla. Ricardo, enfim, voltou a trabalhar. Havia dias bons, todavia um pouco de ressentimento tinha entrado sob a soleira, como o chorume de uma matéria viva de outrora. Por mais que ignorassem, havia algo de podre naquele pequeno reino.
Dispostos por orgulho e por pressão familiar a manter a família, seguiam juntos. A sociedade conjugal que antes deslizava como uma navio em lago tranquilo avançava, agora, a remo forçado. Os silêncios tinham aumentado; o sexo conhecia espaçamentos frequentes. O endereço dos corpos era o mesmo, mas as almas tinham migrado dali.
Ricardo, como dito, já estava recolocado no mercado. Temendo novo momento de desamparo, Aparecida começou a fazer conservas e doces em potes. Recolhia vidros na vizinhança, fervia com zelo, cozinhava bem (uma das suas habilidades) e vendia na rua, quando o filho estava na escola. Era um complemento de renda, buscando restaurar a poupança evaporada.
Acontece que Cida (como a chamavam) era excepcionalmente boa com conservas e doces. Enrolava mamão, arranjava-o nos vidros e elaborava cocadas moles e doce de leite com ameixa. O caju em calda era de uma leveza única. Descobriu que fazer aquelas laranjinhas, kinkans, em leve líquido açucarado, havia despertado até o interesse de um restaurante chique. Em poucos meses, a muleta financeira tornou-se a principal fonte de renda da laboriosa Cida. A dona de casa empreendedora criou um site para seus doces. Teve a ideia boa de colocar no rótulo os poemas de uma célebre doceira de Goiás, que, antes de brilhar nas letras, fora sucesso nas panelas: Cora Coralina. Estava criada uma identidade de mercado.
Estaria solucionado o caso financeiro que cobrou um preço tão alto em um amor intenso? Sim e não. Por um lado, Cida comprou um pequeno furgão de entregas e já contava com quatro auxiliares. O que o marido obtinha como corretor de imóveis era, agora, 20% da renda do casal. O orgulhoso Ricardo era um quinto da felicidade, apenas. O sucesso era o brilho de uma pessoa. O chorume avolumou-se, as discussões aumentaram e ambos consideraram que o fim se aproximava.
Tiveram uma briga forte. Era noite de sexta-feira. Estavam cansados. O filho dormia na casa da avó materna. Ricardo deixara uma toalha molhada sobre o leito. Trocaram palavras amargas até que... o tom subiu muito acima do usual. Olharam-se com dor, porque eram uma família, com um filho, mas contemplavam o esgotamento do projeto. Interromperam a discussão. Nada mais havia a dizer.
Ficaram em silêncio na cozinha, avaliando o fracasso conjugal. Cida, de forma chorosa, tentou abrir os vidros para seguir sua atividade. O trabalho seria seu refúgio. Tentou, contudo a tampa da conserva resistia. Não poderia pedir ajuda. Apenas olhou. Ricardo foi até lá. Pegou o vidro e, com as mãos fortes, abriu com facilidade. A tampa resistira ao côncavo e cedera ao convexo A mulher se lembrou do seu homem e dos desejos que os tinham incendiado. As mãos tocaram-na mentalmente. Ricardo notou que ela mordera a ponta do lábio e abraçou-a por trás. Ela gemeu e cedeu. Afastaram os potes com força e, sobre a mesa da cozinha, recuperaram a conexão sexual. A tampa abriu-se: masculino e feminino reencontraram-se. Cida era a mulher de sucesso; Ricardo, seu homem. Amaram-se com certa fúria e muito prazer. A cozinha estava bagunçada, mas o casamento, arrumado de novo.
Cida convidou-o para trabalharem juntos. Ele era hábil com números e poderia fazer entregas. Ela era a mais inteligente do casal, poderia empreender e coordenar tudo, desde que ele abrisse alguns potes de quando em vez. Não precisavam concorrer, poderiam recriar a sociedade afetiva e sexual, com paridade business. E toda esperança havia, então, renascido por causa de uma tampa.
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