sábado, 9 de dezembro de 2023


09 DE DEZEMBRO DE 2023
MARTHA MEDEIROS

Advérbios de intensidade

Uma amiga deixou uma mensagem gravada no WhatsApp. "Martha, não deixa de assistir ao documentário sobre o Marlon Brando. É fo-da". Ela disse bem assim, separando as sílabas e usando um tom muito suave. Ela é uma mulher doce. Você a conhece, a Malu Mader. Encaixe esta frase na voz dela e você entenderá como soou meigo.

Outro amigo carioca - esse você não conhece - me disse algo com a mesma boa intenção: "Martha, você tem que conhecer Vancouver. É bonito para caralho". Ele não tem a voz doce da Malu, mas ainda assim fiquei comovida com a descrição do lugar. Ele não usou um palavrão, e sim um advérbio de intensidade.

Fui criada numa família em que dizer "que saco" era proibido. Então, custei muito para começar a usar palavrões, só quando saí de casa. Dei meu primeiro beijo antes de dizer meu primeiro nome feio. Hoje qualquer garotinha de dois anos manda a professora da creche para aquele lugar e se bobear os pais aplaudem.

O palavrão está definitivamente banalizado. Entre numa livraria e encontrará, espalhados pela mesa central, os best-sellers A Sutil Arte de Ligar o F*da-se, F*deu Geral, Calma Aí, P*rra!, Como Ser Uma Mãe Foda, Liberdade, Felicidade e F*da-se. Eu não li nenhum deles, mas adorei a biografia do Nelson Motta lançada em 2020, De Cu Pra Lua.

Exagerei um pouco no parágrafo anterior justamente para ilustrar a questão: o que sai da minha boca também precisa escapar pelos dedos no teclado?

Ando mais desbocada, e fico imaginando que talvez eu esteja me tornando aquelas velhas boca suja, que perderam a compostura. Mas a hipótese mais provável é que o mundo virou uma "m" generalizada e o vocabulário apenas acompanha a degradação (olha eu aqui encabulada em digitar um simples "merda". A boa moça voltou).

Verdade verdadeira? Não gosto do uso indiscriminado de palavrões dando título a obras. Me soa apelativo. Palavrão é um desabafo oral que sai espontaneamente, misturado à emoção do que está sendo vivido ou contado. No estádio, no trânsito, em um momento de raiva. Pode, também, fazer parte de uma performance pessoal, de um estilo de se comunicar, ser o chamariz de uma gargalhada - funciona como uma catarse divertida. Ou seja, palavrão bom é o que não ofende ninguém, é apenas força de expressão.

Sei que o mundo está tão brutal que já palavra nenhuma nos choca. O baque vem das imagens de guerra, da violência da exclusão - indescritíveis. Ainda assim, não precisamos injetar mais agressividade onde ela já reina. Proponho manter o palavrão só como advérbio de intensidade e trocar as ofensas grosseiras pelo nosso mais profundo e silencioso desprezo - já que indiferença também machuca.

Algo me diz que esta campanha não vai pegar. Putz.

MARTHA MEDEIROS

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