16 DE DEZEMBRO DE 2023
FRANCISCO MARSHALL
HIPÓDAMOS E HIPÓCRATES
A escola de filosofia inaugurada por Tales de Mileto (626-545 a.C.) instaurou um espírito de argúcia que animou muitas gerações de intelectuais para que seguissem transformando o mundo, criando conceitos e metodologias aplicadas ao pensamento especulativo e à vida social. Dessa escola, proveio Hipódamos de Mileto (496-408 a.C.), o primeiro pensador do urbanismo.
Na ilha de Kós, próxima de Mileto, viveu o primeiro médico moderno, Hipócrates (460-370 a.C.), autor do célebre juramento e de uma nova medicina, analítica e laica. Hipódamos viveu na era em que as cidades gregas se reconstruíam após as Guerras Greco-Pérsicas (490-479 a.C.), e o faziam com o otimismo dos vencedores, animados pela aura de um regime revolucionário, a isonomia ateniense. Ainda jovem, Hipódamos foi chamado a Atenas para reconstruir o porto do Pireu, destruído pelos persas; ali implantou um sistema urbano geométrico, equilibrado, que perdura até hoje não apenas naquele bairro, mas em milhares de cidades de todo o mundo, que aplicaram o sistema hipodâmico, uma grade de quarteirões em escala proporcional, que dá ordem ao território, e permite distribuírem-se funções e serviços da cidade de modo planificado, com racionalidade.
Muitas cidades gregas adotaram aquele regime urbanístico, querendo tornar-se poleis ideais. Viver em harmonia em uma cidade inteligente era (e segue sendo) caminho para a felicidade.
Pensar a cidade e nela, corpos e mentes saudáveis, eis o legado de Hipódamos ao jovem médico Hipócrates, insuflado pelo espírito iluminista da Grécia clássica, no século V a.C.. Assim como os filósofos descartaram as explicações tradicionais impostas por mito e religião, em favor do pensamento emancipado, também Hipócrates abandonou a medicina arcaica, baseada em crenças religiosas de possessão e exorcismo e em teatralizações rituais da cura, para avançar em uma medicina de registro e análise de sintomas, prognósticos e profilaxias voltadas para uma vida saudável. Os escritos de Hipócrates difundiram-se e com o tempo produziram um conjunto de textos de história, ciência médica e ética, o chamado Corpus Hipocraticum, a obra mais difundida da história da saúde.
Dessa obra, acredita-se que 14 textos são de autoria de Hipócrates, incluindo-se o tratado Sobre os Ares, Águas e Locais, em que se desenvolve a análise dos fatores virtuosos de aeração, iluminação e abastecimento que podem gerar cidades saudáveis, com populações sadias e aptas à felicidade. Urbanismo e medicina encontravam-se formando conceitos e métodos voltados ao bem viver, com saúde.
Ora vagamos em cidades inimigas da inteligência urbanística, arboricidas, democratofóbicas, cativas de especuladores despudorados e demagogos estéreis, com agressivas sombras artificiais, que destroem o patrimônio edificante e trocam os bons fármacos do saber por epidemia de farmácias feias. Crias da filosofia, urbanismo e medicina dialogavam em suas origens; hoje ambas nos olham e perguntam: por que abandonastes o saber precioso que esteve na raiz de tudo?
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