terça-feira, 19 de dezembro de 2023


19 DE DEZEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Gringo que é gringo

Nasci em Caxias. Sou gringo. Sei bem o que é ser gringo. Gringo que é gringo não joga fora nada que recebe. Pode ser um cartão, ou um desenho, ou um objeto que nem combina com a sua decoração. Tenha certeza de que ele vai usar, vai achar um lugarzinho na estante para o regalo ser notado.

Por isso, as paredes de um restaurante italiano estão sempre repletas de retratos, bandeiras, fotos de clientes, dedicatórias. Transmitem uma opulência palaciana. Não existe espaço para descansar do vaivém das pupilas.

Todo restaurante italiano é assim: uma Capela Sistina da família, um brechó, um armazém de secos e molhados. Os quadros vão até o teto, não se restringindo à altura média dos observadores.

Gringo que é gringo adora uma balbúrdia, um gritedo, abraços escandalosos, cumprimentos efusivos, sobrenomes difíceis, mesa cheia. É tributário de guardar álbuns de fotografias dos parentes, de apontar o dedo quando fala de alguém, de explicar exatamente de onde veio e foi criado.

Gringo que é gringo buzina mais para a calçada do que para a rua, saudando os seus conhecidos. Afeição calada não serve. Amizade sem boemia não serve. Conversa sem sotaque não serve. Gringo que é gringo coleciona porta-retratos, estátuas de santos, toalhas de mesa, panos de prato, garrafões de vinho, camisetas de futebol autografadas, os mais variados terços.

Seus mortos estão em cenas ovaladas, por trás de espesso vidro, povoando os corredores. Seus varais são festas juninas. Chapéus ondulam em ganchos de trás das portas, casacos humanizam cabideiros, aventais e panos de prato ocupam o espaldar das cadeiras.

Gringo que é gringo não conhece tinta branca; a brancura causa repulsa, é inexistência de Deus, ausência de inspiração, covardia, omissão, indiferença. Prefere cores chamativas, perceptíveis a distância.

Gringo que é gringo será barroco, exagerado, biográfico. Não dispensa um mísero mimo. Ao receber um pôster da Cascata do Caracol, prega. Ao receber um cartaz de um filme a que nem sequer assistiu, prega. Ele não escolhe, acumula. Descarte é traição; jamais esquece quem esteve ao seu lado e o ajudou nos momentos difíceis, mesmo que simbolicamente.

Gringo que é gringo ou ama ou odeia, ou salva ou se vinga, ou é amigo para sempre ou inimigo eterno.

Gringo que é gringo não tem gavetas, mas altar. Interessa-se exclusivamente por aquilo que é visível. Transforma lembranças em relíquias. Não somente as guarda, mas faz questão de exibi-las para as visitas, profundamente agradecido. Expor é comprovar o seu orgulho da experiência, da cumplicidade.

No fundo, gringo tem receio de morrer sozinho, sem herança, sem espólio, sem nada a ser dito a seu respeito. É o medo incurável de quem, na história, já perdeu tudo quando seus ancestrais deixaram a Itália.

CARPINEJAR

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