09 DE SETEMBRO DE 2023
Carpinejar
Entrando numa fria
Na minha infância, temia-se a caderneta de fiado do armazém e as contas do telefone fixo, da água e da luz. Era o equivalente ao pânico de hoje no momento de receber a fatura do cartão de crédito.
Havia a data fatídica no início do mês, em que todos os excessos seriam descobertos. Os pais mudavam o seu comportamento, e passavam a se mostrar nervosos, aflitos, ansiosos, rabugentos. E teve um dia da chegada dos boletos em que pesou a minha culpa.
Não conseguia ler no quarto. Dormia com os dois irmãos nos beliches. Eles brigavam comigo quando acendia a luz do abajur.
Para evitar a frequente confusão, e não sofrer com o calor e a invasão dos mosquitos da sala, veio a ideia maravilhosa de ler diante da geladeira aberta. Desfrutaria da lâmpada interna e de refrigeração, um luxo numa residência que somente contava com pequenos ventiladores.
A geladeira redonda e branca, de sobrenome estrangeiro pomposo, Steigleder, me serviria de luminária e ar-condicionado, no melhor dos dois mundos. Colocava uma almofada no chão, e folheava tranquilamente meus livros durante uma hora ou duas, até chegar a dormência.
Alguns autores lidos quase morriam de hipotermia, não eu, nada que eu não resolvesse com minha cobertinha. Lembro claramente do cheiro da comida requentada nas prateleiras de metal, do odor forte do queijo e do salame. Rezava para que não tivesse nenhum alimento vencido e podre capaz de estragar o meu passatempo.
Tudo transcorreu perfeitamente por um mês. Até vir a conta astronômica da energia elétrica. Eu ouvi a minha mãe brigando ao telefone com funcionário da CEEE, alegando que o valor era um roubo, que houve erro na medição, que não justificava o salto vertiginoso dos números de um mês para o outro, já que não tinha ocorrido nada de diferente na nossa rotina.
Depois, eu ouvi a minha mãe discutindo com o meu pai, ambos se culpando pelo desperdício. Trancados no escritório, eles colocavam o disco de Maria Bethânia no máximo volume na vitrola para disfarçar e sufocar os berros.
Em seguida, eu vi a minha mãe controlando o tempo do nosso chuveiro, patrulhando as luzes sem ninguém no aposento, xingando qualquer abuso de nossa parte. Foi um inferno na época, um curto-circuito mental em todos a minha volta, desestabilizei a família com as minhas leituras.
Nunca disse que fui eu. Permaneci neutro como as verduras na gaveta de baixo da geladeira. Imaginava que o castigo seria implacável. Mas, pensando bem, deveria ter confessado. No máximo, eu ficaria trancado no quarto lendo à vontade, sem a importunação dos meus irmãos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário