30 DE SETEMBRO DE 2023
BRUNA LOMBARDI
DO QUE RIMOS?
Tem um verso num dos meus livros que diz: "Das liberdades, meu amor, eu quero todas". A ideia de liberdade me acompanha desde criança porque fui criada com esse conceito. Não me deixar intimidar, restringir, acuar, diminuir. Não me sentir presa, nem obediente ao que não
concordo. Meus pais me ensinaram a me manifestar, defender, posicionar. Não é uma tarefa fácil para nenhuma mulher. Requer um esforço, uma atitude e atenção permanentes. Um estado de alerta e ataque a qualquer movimento ameaçador.
Requer abrir mão de conforto, segurança e comodidade para conquistar o próprio espaço e encontrar a própria voz. Com todas as perdas e danos que isso possa causar. Dúvidas, decepções, sofrimentos inevitáveis. Um preço caro para se livrar das amarras, correntes, censuras e auto censuras. Repressão interna e externa que bloqueiam o caminho.
Mas quero é falar sobre o humor. A força desfraldada e maravilhosa do humor. Do que rimos? Quais as coisas que nos fazem rir? A começar por nós mesmos. Rir do que nos acontece, do que erramos, do jeito que reagimos, é uma ótima maneira de aliviar a vida.
O pior de uma viagem vai ser sempre o mais engraçado para contar aos amigos. Pode ser ruim na hora, mas a gente sabe que um dia vamos rir disso tudo. O humor quebra barreiras, entra em lugares proibidos. A criança gargalha com o humor escatológico. O palavrão quebra a rigidez de certos comportamentos.
Mas desde muito cedo comecei a perceber um tipo de humor que me incomodava. Era o humor tácito do preconceito e tão familiar que estava em qualquer programa de TV. Era a piada sobre o gay, a feia, a gorda e assim por diante, ridicularizando e ferindo pessoas. Eu era adolescente e não achava a menor graça nisso.
Hoje, muita gente discute a ideia do politicamente correto, sem entender de fato a extensão que há por trás. O estigma. A marca indelével nas pessoas que são atingidas por essas flechas de humor que causam danos irreversíveis.
Se uma piada ri do preço barato de um puteiro de beira de estrada, está rindo exatamente do quê? O que existe por trás desse humor? A tragédia da miséria, do machismo, do abuso e violência contra a mulher. É bom rir disso?
Não se trata de censura e nem de politicamente correto, mas sim de humanamente concebível. Criamos um tipo de humor machista e preconceituoso que se repete há tanto tempo e se diz libertador.
Não, não é. Na verdade liberta toda uma sociedade de reforçar um comportamento tóxico, um preconceito estrutural, uma ferida social atenuada pela gargalhada.
Criei uma cena no nosso filme O Signo da Cidade, que deu prêmio de melhor ator ao brilhante Juca de Oliveira. Ele está numa cama de hospital e pede como último desejo ver uma mulher nua. Uma enfermeira se recusa e uma outra aceita. É uma mulher gorda, e a plateia ri antecipando a piada.
Em seguida, há um silencio profundo de todos diante de uma das cenas de maior afeto que já escrevi na vida. E todos compreendem que não é uma cena de humor, mas de extraordinária generosidade.
P.S.: podem assistir na Netflix.
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