Abandonada numa caixinha de sapatos
Eu não tenho como saber o que virá das perguntas do público em minhas palestras. Devo estar preparado para enfrentar as mais profundas questões existenciais. Vejo que não condiz com a realidade a crença de que as pessoas temem abrir os seus tormentos pessoais em público.
Recentemente, em palestra no interior de Minas Gerais a respeito do meu novo livro, Manual do Luto, que aborda a despedida e a saudade, uma senhora de cerca de 60 anos pediu a palavra.
Ela enfrentava dificuldades para terminar o raciocínio, entrecortado por soluços de um verdadeiro desabafo. Havia uma sinceridade represada que transpunha os diques de proteção e assumia a força inabalável de uma explosão das águas do choro.
- Eu vivo uma rejeição profunda. Ao nascer, fui abandonada pelos pais numa caixinha de sapatos. Envolvida numa manta, como se fosse um cachorrinho. Eles me largaram de volta no hospital em que eu nasci. Nunca me recuperei de ter sido negada, posta de lado, à sombra, por quem me deu à luz.
Talvez esperasse de mim uma reação de desamparo, de concordância espantada, de comiseração. Mas eu não senti pena, emergiu uma clareza determinada da minha intuição. Aproximei-me dela no meio da plateia e falei, com as minhas mãos encostadas em seus ombros:
- Está enganada. Você foi salva da rejeição em vida, que é muito pior do que a rejeição do nascimento. Seus pais a amaram o suficiente para que não quisessem que você fosse infeliz com eles e como eles. Tanto que tiveram o cuidado de deixá-la no hospital, onde poderia ser cuidada. Careciam de recursos emocionais mais do que de recursos financeiros para sustentá-la.
Desfrutavam da difícil e rara consciência de que não serviam para você, de que merecia uma chance melhor. Não havia amor e acolhimento naquele lar, nada que pudesse suprir o que você buscava. Escapou de um ambiente tóxico e opressivo, de ouvir brigas e discussões a todo instante, de ser recriminada e censurada, de perder qualquer liberdade sobre seu futuro. Não se veria indesejada uma vez, mas se veria indesejada diariamente.
Ela suspendeu as suas lágrimas. Entendeu que não precisava de outra vida - escoltada no momento pela ternura cúmplice do marido, dos filhos e da sua família adotiva -, que apenas devia mudar o seu ponto de vista.
Assim, o seu sofrimento acenou para nós e virou as costas. Ocupando o seu lugar, surgiu um sorriso lindo, que se esboçou primeiramente no brilho dos olhos, para depois se espalhar pela boca.
Ela me abraçou e sussurrou: - Eu nasci de novo hoje. Eu também ri, e concordei:
- Agora você vai nascer sempre, já que você se escolheu para sempre.
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