Precisamos entrar num caixão para imaginar a morte?
Força da alteridade, suplantada pelas asas da imaginação, não cansa de se mostrar necessária
Quando tinha 62 anos, o coreano Ha Yu-soo começou a pensar na própria morte. Angustiado para saber como se sentiria quando já não pudesse sentir nada, resolveu fazer um teste: arranjou um caixão, vestiu o sudário amarelo com que os mortos são velados no seu país e se deitou lá dentro, pedindo que alguém fechasse a tampa. Alguns minutos depois, saiu, se sentindo gratificado por estar vivo.
Ha Yu-soo achou a experiência interessante e acabou criando uma espécie de imersão para que outros pudessem vivê-la, aprimorando um pouco a fórmula, com a elaboração de um testamento e elementos ritualísticos como fotos e velas. A primeira turma conseguiu reunir setenta pessoas em Seul e a imersão seguiu velando dezenas de outros interessados em valorizar a vida a partir da perspectiva de sua perda.
Ilustração de dois caixões brancos com sombras pretas bem marcadas
Bruna Barros/Folhapress
Descobri isso assistindo ao documentário "Sociedade do Cansaço", onde o filósofo Byung-Chul Han aponta o mórbido exercício como sintoma de uma população esgotada pelas rédeas do capitalismo, onde a exaustão é tamanha que a morte é vista quase como fetiche: dentro do paletó de madeira poderão finalmente ter algum descanso.
Reassisti à cena algumas vezes, picada por outra questão: será preciso se deitar em um caixão para imaginar a morte? Não bastaria fechar os olhos e suscitar o sudário e sentir a escuridão dentro das pálpebras? Ou ler um livro narrado por um cadáver, como o brilhante "Memórias Póstumas de Brás Cubas"?
O que essa cena desvela, além do apontado por Byung-Chul Han, é uma dificuldade para imaginar, para abstrair, para se colocar no lugar do outro –ainda que esse outro seja você mesmo, em uma versão do futuro.
É possível que essa dificuldade nasça também do cansaço, afinal, fica difícil exercitar a imaginação quando não temos tempo para nada, quando estamos intoxicados por notícias e combalidos pela "fadiga da informação".
A desvalorização da cultura e, portanto, da leitura, acentuada nos últimos anos no Brasil, também nos leva para esse mesmo lugar. Assim como o uso crescente das redes, tomando o lugar das páginas literárias na nossa rotina.
Imaginar é um exercício, cujo músculo cresce na leitura. Como diria a escritora Rosa Montero, "ler é uma forma de viver". E quanto mais malhamos esse bíceps, imaginando outras vidas, mais temos capacidade de criar e experimentar cenários distintos com realismo, sem ter de vivê-los de fato.
Assim não precisamos, por exemplo, passar por uma ditadura militar para sentir as dores de uma ditadura. Nos momentos mais trevosos do bolsonarismo, quando parte da população brasileira saiu às ruas pedindo por um golpe, me perguntei: todos esses desejariam mãos de ferro se tivessem lido sobre as ratazanas colocadas nas vaginas das presas nos porões das ditaduras latino-americanas?
A força da alteridade, suplantada pelas asas da imaginação, não cansa de se mostrar necessária, inclusive neste exato momento, quando atravessamos as portas da crise do clima. Será que precisamos sentir na pele o mal-estar do calor e o fogo dos incêndios para entender a gravidade da emergência climática?
Imaginar é preciso. E, se for necessário um caixão para esse exercício, que seja. Antes um pé na cova da hipótese do que dois na da realidade adquirida.
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