quarta-feira, 20 de setembro de 2023


20 DE SETEMBRO DE 2023
MÁRIO CORSO

Cabeças retas e cabeças tortas

O Brasil conhece pouco o Brasil. Quem nos deu a melhor descrição dos pirahãs da Amazônia, um dos mais enigmáticos povos do planeta, foi um norte-americano. Daniel Everett era um missionário metodista que veio lhes trazer Jesus.

A missão foi um fracasso. Não havia como. Não tratava-se da barreira linguística, pois ele morou anos na tribo e aprendeu a língua pirahã. A barreira foi a forma distinta de pensar. Eles não têm a ideia de Deus e, mais do que isso, como sua língua não conjuga nem passado, nem futuro, eles não têm mitos. Vagamente imaginam entidades maléficas das quais se protegem com amuletos. O cristianismo era uma abstração para a qual não estavam preparados nem interessados.

Passaram os anos e a fé de Everett se foi, mas não o amor pelos amigos indígenas. Usou o conhecimento da cultura e da língua pirahã para seu trabalho de campo como antropólogo linguístico e levou ao mundo algo do mistério desta inclassificável tribo.

Everett diz que a língua pirahã quebra as pernas da teoria de Chomsky. Ela não apresentaria as estruturas elementares que ele desenhou. É um sistema linguístico peculiar, pois ela pode ser tanto falada como, paralelamente, assobiada. Isso permite incursões na floresta onde eles "falam" e a caça ou os inimigos creem ouvir pássaros.

Sem noção numérica, eles são logrados pelos brancos que compram as castanhas que recolhem. Para sanar isso, Everett tentou ensinar-lhes matemática. Quando os jovens começaram a aprender, os mais velhos impediram o processo.

Os pirahãs chamam a si mesmos de "cabeça reta", e todos os outros povos de "cabeça torta". Metáfora para quem pensa certo, reto, para com quem pensa errado, torto. Logo, como um cabeça reta aprenderia com um cabeça torta?

Fica claro nesta tribo como os pais podem atrapalhar seus filhos quando estes estudam algo que eles não entendem. O exemplo é remoto, mas este comportamento é universal.

Nas análises, frequentemente surge esta faceta maligna dos pais. Eles querem o "bem" de seus filhos, mas não suportam que os jovens saibam algo que eles mesmos não entendem. Menos por questões técnicas, e mais na maneira de entender o mundo e levar a vida.

São pais de cabeça torta, que julgam ter a cabeça reta. Como nos pirahãs, eles não têm alcance do que se passa e, mesmo assim, julgam-se sábios. Talvez as novas gerações se importem com o número de castanhas.

MÁRIO CORSO

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