29 DE SETEMBRO DE 2023
CARPINEJAR
Minha tara por telefonar
Metade de mim é analógica. Adoro ligar, falar ao telefone. Mas sou cada vez mais sozinho em minha preferência. Ninguém mais atende à ligação de primeira. Com exceção da minha esposa.
Por isso, estamos casados. Somos fifi. É muito raro ela me deixar esperando até o terceiro toque. Eu também não faço desfeita. Se não posso atender no momento, mesmo assim a atendo para dizer que retorno em breve. Costumamos trocar mais de 10 telefonemas diários. Jamais contei quantos são, não me incomodam - você somente enumera cobranças ou críticas.
Para falar ao telefone com filhos, devo enviar mensagem por escrito para pedir que me atendam. Na maioria das situações, eles me frustram propondo que eu grave um áudio, o que estraga qualquer intimidade ou vontade de dialogar. Pois quero essencialmente ouvir como estão.
Cansei de fazer chantagem, birra, para obter atenção deles. Percebi que as minhas solicitações para conversar com eles eram maiores do que nossas conversas. Já tinham virado discussões de relacionamento. Deve ser um conflito geracional.
Eu me vingo com os amigos. Como represália pela extinção do meu modo de ser, o plano que mais gosto de executar é ver que a pessoa está mandando um áudio longo, esperar finalizar seu carregamento e telefonar em seguida, obrigando o outro a falar tudo de novo, exatamente o conteúdo do áudio. Tenho indescritível prazer de obrigá-lo a repetir.
Isso que dá ter preguiça de me telefonar. Estabeleço um pedágio, um carma com cada um dos meus afetos por me sentir excluído pelos meios digitais.
Tampouco entendo quem me manda mensagens e tem urgência de alguma posição de minha parte. Reclama que não visualizei a mensagem. Ora bolas, se tem urgência, ligue. Mensagens são destinadas a ser lidas sem pressa, de acordo com a disponibilidade de cada um. O retorno é facultativo.
Sou da turma que rasga os sacos de frutas do supermercado em vez de tenta tirar o nó. Não tenho paciência para os laços ninjas dos atendentes, inclusive porque não vou guardar os plásticos.
Da mesma forma, eu me filio à escola da intensidade da comunicação. Ou eu digito, ou eu telefono. Ou entrego a emoção de minha palavra, ou a do fluxo de minha entonação. São as duas formas em que expresso a minha espontaneidade.
Tanto que fiquei feliz agora que é possível editar as mensagens enviadas no WhatsApp, para não mais sofrer com nenhum erro de português na digitação. Desleixo nunca foi liberdade. O corretor parou de me constranger.
Áudio só no meu desespero. Se você recebeu minha voz, pode ter certeza de que não me encontrava no meu melhor dia. A preguiça me corrompeu. E, se o áudio tem mais de um minuto, não sou eu. Não mando podcasts. Assisto a monólogos exclusivamente no teatro.
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