sábado, 16 de setembro de 2023



16 DE SETEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Medicação criativa

Se você pensa que é sofrido e estressante aplicar remédio para bebê, com o receio de errar a dose, de exagerar ou moderar demais a diluição, de a criança cuspir ou vomitar, então experimente medicar seu cachorro.

O filho pequeno depende de você, uma hora acabará cansando da birra e entendendo. Chora, mas aceita ao final. É um teatro que abre e fecha as cortinas. Já o cachorro acredita que é você que depende dele, e nunca cede aos seus apelos. Propõe um jogo de esconde-esconde próprio de desenho animado. Em ambos os casos, penará tentando ser criativo. Mas unicamente não terá sucesso com o seu cachorro.

Ele sente que está sendo enganado com o falso petisco e se defende com a rapidez de seus reflexos.

Vai cuspir o remédio olhando para você. Encarando o seu fracasso, a sua reação nula de impotência, o seu olhar aflito diante do desperdício. Para você entender de uma vez por todas que ele não quer. Desinteressado inicialmente pelo cheiro, sempre se portará desinteressado. É uma rejeição à primeira cheirada, definitiva.

Não adianta fingir que está comendo algo e deixar cair o comprimido. Nossas encenações são péssimas para o mundo pet. Ele nem irá investigar a pílula dourada, despistado pela pantomima amadora.

Pode arriscar oferecer dentro da ração o que foi receitado pelo veterinário. Já aconteceu de o meu cão comer o conteúdo inteiro na tigela, menos a parte com a medicação, que sobrará babada com requintes de deboche.

Pode inserir o elixir medicamentoso no interior de uma salsicha, com a perícia de um açougueiro. Não sei como, porém ele arrodeia com os dentes o objeto intruso e o expele intacto.

Sua reincidência com outra salsicha será inútil, ele ficará cada vez mais esperto. Farejará o seu medo, a sua mentira, a sua necessidade. Até porque ele não se considera doente. Ao perceber a sua movimentação suspeita, dando muita atenção, mais do que o comum, vindo para cima com aquela voz infantil e piegas de dublagem, sairá correndo pela casa, abanando o rabo como hélice.

Carinhos serão compreendidos como ameaças. Recompensas serão vistas como chantagens. O cachorro é ainda mais inteligente na fragilidade. 

Estava prostrado e sonolento minutos atrás, com a feição casmurra em cima das patas, e, de repente, se enche de saúde para fugir do enfrentamento. Combate a sua apreensão com uma disposição fora de série. Parece que não existe mais nenhuma debilidade, que é paranoia da sua cabeça.

O inferno é redobrado com remédio líquido. Não é uma tarefa para principiantes. Cachorreiro de carteirinha já aprendeu a soprar o focinho como vela de aniversário. Com uma seringa, aproveita o breve vacilo da comichão. Só com cócegas mesmo, só com golpe baixo no maior dos afetos.

CARPINEJAR

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