quinta-feira, 14 de setembro de 2023


14 DE SETEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

A prima de minha mãe

O Rio Grande do Sul teve 47 óbitos até o momento em decorrência das enchentes que atingiram o Estado na semana passada. Muçum, município com 4,6 mil habitantes, acabou sendo o que acumula o maior número de vítimas.

Das 16 mortes, uma delas é da prima de minha mãe. O que a minha mãe mais temia aconteceu. Desde que ficou sabendo da inundação, procurava telefonar para a sua prima sem resultado, sem obter seu paradeiro. Claire Bonatto, de 87 anos, independente e altiva, alegre e cantante, morava sozinha e foi enganada pela força tempestuosa e violenta das águas.

Ela realizou procedimentos de emergência que costumava adotar em épocas de cheia. Levava tudo o que precisava para o segundo andar da sua residência híbrida de concreto e madeira, e seguia protegida até baixar o Rio Taquari e retomar a normalidade. O que ela não esperava é que o volume das águas subisse mais de 25 metros em algumas horas, engolindo 85% da cidade e não dando a mínima chance para a sua sobrevivência. Ficou presa na emboscada de sua própria casa, restando apenas o telhado visível.

Claire era a gentileza anfitriã em pessoa, nossa rainha na Princesa das Pontes. O motivo que levava a minha mãe a retornar a Muçum. A parte da família que tinha permanecido na cidade. O elo das gerações de netos com os antepassados. Ela nos recebia com cachaça caseira feita com butiás. Sempre nos alertava para não cair na tentação de comer as frutas. Fazia cueca-virada para as crianças não economizando açúcar e canela.

Cuidou do seu pai, Armando, até ele morrer. Não negou apoio e amparo na velhice dele. Só soltou a mão paterna quando fechou as suas pálpebras. Ela cerrou suavemente os seus olhos na cama, guardando a última imagem daquela humanidade.

Brincava com a minha mãe no mato e nas pedras redondas nos fundos do hotel de minha nona, às margens do rio. Com uma diferença de três anos a mais, mostrava-se líder das excursões, sabichona de trilhas desconhecidas. Dizia que iria morar para sempre em Muçum, promessa que cumpriu. Falava que não havia nada mais bonito depois dos morros. Descobriu que Muçum era onde repousava a curva do arco-íris.

Acompanhava a minha mãe na procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. Numa das comemorações, explicou um costume local quando existia um desaparecido no Rio Taquari: mandar uma tábua de madeira com uma vela, e a luz encontraria o afogado.

Dessa vez, a chama não quis ir para a sua missão. Tremulou com covardia, com medo, com enorme pesar de sua fumaça e de seu calor. Pois conhecia Claire desde o berço, fogo de seu fogo, fé de sua fé, terra de sua terra.

CARPINEJAR

Nenhum comentário: