O sofrimento de Muçum
Minha mãe nasceu em Muçum. A cidade foi batizada devido ao peixe muçum, que era abundante numa cachoeira próxima e serviu de alimento para os marinheiros e viajantes no início da colonização, em 1888.
A mãe passou a infância inteira se banhando no Rio Taquari. Ela caminhava sobre os cascalhos sem cair, malabarista das águas escuras. Colecionava pedras redondas, que rolavam anos e anos em atrito umas com as outras no fundo das correntes, desfazendo as suas pontas cortantes.
Em suas histórias de criança, contava que o mundo podia ser entendido sob duas perspectivas: uma feliz, de cima da Ponte Rodoferroviária Brochado da Rocha, que tem 289 metros de extensão e sete arcos, e outra triste, debaixo dela.
Hoje, quando a visitei, a minha mãezinha me abraçou chorando. Meu ombro ficou molhado de suas lágrimas de luto. Quem é de Muçum deixa o seu coração lá. Ela estava pranteando por vítimas que sequer conhecia, mas que mantinham em comum a mesma raiz dos morros. Quinze mortes foram confirmadas no seu município natal, causadas pela chuva que atinge o Rio Grande do Sul desde domingo.
A cidade submergiu. Desapareceu engolida pela enchente. Mais de 85% dela acabou tragada pela cheia do Rio Taquari. Moradores precisaram ser resgatados em cima de telhados e forros de casas. Não há sinal de telefone, a energia permanece cortada por questão de segurança, os quatro acessos pela estrada estão bloqueados. O nível da água cobriu o centro, alagando escolas, estabelecimentos comerciais e hospitais.
Da suavidade da sua memória saltamos de repente ao terror do desamparo. As mesmas águas que acariciavam os seus pés quando criança vêm provocando estragos sem precedentes na história local. Ela, com seus 84 anos, se viu assustada como se fosse aquela menina de tranças morando na sua cidade, procurando o colo e o apoio dos pais.
Falou: - É o olhar desesperado por baixo da ponte. Não sei o que responder para ela. Ficamos observando o seu jardim seco de pedras redondas. Não conseguimos pensar em outra coisa, interditos pela mirada vazia da fatalidade.
Rio Grande do Sul se encontra em luto, após sucessivos temporais e desastres naturais, que aconteceram numa sequência avassaladora entre junho e setembro. São até o momento 21 perdas entre Muçum, Estrela, Lajeado, Mato Castelhano, Passo Fundo e Ibiraiaras. O tempo não ajuda. Nem todos puderam ser identificados. A impotência é imensa. A dor nem saiu do seu raso, é ainda susto e choque.
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