sábado, 1 de novembro de 2014



02 de novembro de 2014 | N° 17971
FINADOS ESCOLHA PELA CREMAÇÃO

Viagem para realizar sonho de Mari Angela O RITUAL DAS CINZAS

OPÇÃO DAS FAMÍLIAS em 18% dos óbitos na Capital maior índice do Brasil , procedimento existe no Estado desde 1997. Pedidos vão do adeus em lugares distantes a cinzas em pingentes

Mari Angela Wilhelms morreu aos 55 anos sem conhecer a cidade que passou a vida inteira imaginando como seria. Delegou à filha a execução de um de seus últimos desejos: ter as cinzas da cremação levadas até a Golden Gate, cartão-postal da californiana San Francisco, nos Estados Unidos.

– Tá brincando comigo, né? Já não basta o que eu passo viajando e ainda vou ter que te levar para lá? – gracejou a aeromoça Tamara Wilhelms Zimmermann, 37 anos.

Mari Angela ainda não tinha adoecido, e a saúde em boa ordem justificou o estranhamento da filha frente ao pedido. Com a intenção de contratar um seguro de vida para cobrir todas as despesas, a professora de inglês reafirmou o propósito:

– Eu quero que isso aconteça.

Quando diagnosticado, em 2012, o câncer de fígado já estava em fase de metástase, tendo avançado por outras partes do corpo. Tamara morava em São Paulo, enquanto a mãe se submetia ao tratamento em Porto Alegre. Visitava-a nas folgas das viagens internacionais para as quais era escalada pela companhia aérea, o que a obrigava a ficar muito tempo distante das duas filhas pequenas.

Desembarcava de um voo a trabalho, passava em casa para trocar as roupas da mala e logo seguia para o Rio Grande do Sul. Mari Angela, que decorava o quarto com um pôster da ponte famosa, morreu cinco meses depois de descobrir a enfermidade, em setembro daquele ano.

Agora, Tamara finalmente se sente capaz de encarar a tarefa. Providenciando os últimos documentos para o traslado das cinzas, incluindo consultas à Polícia Federal e ao consulado americano, a comissária pretende viajar nos próximos dias, antes que se esgote o prazo que ainda lhe permite embarcar em um avião – grávida da terceira filha, ela talvez tenha de adiar a missão para o ano que vem, depois do período de amamentação.

– Me culpo por não ter ido antes, mas não é uma coisa fácil de se fazer. Primeiro precisei trabalhar isso na minha cabeça. Foi muito doloroso, a doença tomou conta muito rápido. Não conseguia falar sobre isso, chorava muito – justifica.

Tamara quer ir sozinha. Pesquisou sobre a cidade e já sabe como chegar até a Golden Gate utilizando o transporte público. A intenção é que a estada seja a mais breve possível.

– É uma responsabilidade bem grande. Preciso fazer o que ela me pediu.

Oito dias antes de morrer, Mauro de Araújo Cardoso introduziu o assunto pela primeira vez. Esgotadas as possibilidades de tratamento para um câncer de pulmão e diante do agravamento do quadro, o empresário revelou à mulher, no quarto que ocupava no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o que desejava para a despedida.

Queria ser cremado, e as cinzas deveriam ser espargidas em dois dos mais significativos locais daqueles 76 anos de vida que se encerrariam em abril de 2012: no Rio de Janeiro, cidade onde vivera na infância, e no parque da Redenção, em Porto Alegre, cenário das caminhadas de final de semana ao lado da companheira.

– Desde o diagnóstico, ele sabia que era muito grave, mas jamais falava em morte. Nem admitia sua proximidade. Evitava enterros. Era um tema que não fazia parte da vida dele. O pedido me surpreendeu – relembra a comerciante Margarete Linn, 50 anos.

Disponível no Rio Grande do Sul desde 1997, a cremação hoje representa a escolha dos familiares em 18% dos óbitos em Porto Alegre. Segundo José Elias Flores Júnior, presidente do Sindicato Nacional dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), trata-se do maior índice do país. Em São Paulo, onde teve início há mais de 40 anos, o serviço é contratado em menos de 10% dos casos de morte.

A especialização do setor e o crescente entendimento do público ao longo dos anos contribuem para a maior aceitação. É possível escolher entre uma grande variedade de urnas e preços, incluindo um modelo solúvel em água, biodegradável, ideal para ser jogado no mar ou em rios e também para ser plantado com sementes para a floração de plantas em memória ao falecido.

Pode-se também armazenar uma ínfima quantia dos restos mortais em um pingente de ouro para gargantilha ou encomendar a fabricação de um diamante na distante Suíça (leia mais abaixo). Muitos, como Margarete, viajam para um destino que simbolize algo especial – a lembrança de férias felizes, o país natal de quem morreu, um ponto turístico que o parente sonhava conhecer e não teve tempo.

– Acho que agora as pessoas conseguem entender o processo. A nossa vida toda é feita de rituais: nascimento, 15 anos, formatura, casamento. O falecimento é um momento que, obviamente, ninguém quer que chegue, mas um dia ele chega. É importante ritualizá-lo para aqueles que ficam – comenta José Elias, também diretor-presidente do Grupo Cortel, que administra os crematórios Metropolitano São José, em Porto Alegre, Metropolitano Saint Hilaire, em Viamão, e Metropolitano Cristo Rei, em São Leopoldo.

UM IMPREVISTO AO EMBARCAR

Margarete cumpriu todas as orientações do marido. Na cerimônia final, no crematório, uma faixa estampou a palavra “feito” – mensagem que, segundo Mauro, asseguraria familiares e amigos de que tudo tinha valido a pena. Como trilha sonora, Não Deixe o Samba Morrer, de Alcione. Passados 30 dias da morte, em uma tarde de sábado, a comerciante reuniu amigos na Redenção e distribuiu 40 envelopes com porções das cinzas.

– Vou pedir que cada um escolha um lugar para fazer uma conexão com ele. Quando eu andar por aqui, vou saber que ele está em todos os lugares – pediu a viúva.

A segunda etapa do plano foi executada dois meses depois. De posse da urna com o restante das cinzas, Margarete chegou ao aeroporto Salgado Filho acompanhada da filha, a enfermeira Maria do Carmo, 25 anos. No balcão de check-in, informou a atendente, espontaneamente, sobre o conteúdo inusitado da bagagem.

– A companhia não carrega cinzas, senhora – explicou a balconista, atônita diante da revelação.

Com pouco tempo disponível até o horário de embarque, Margarete se enervou. A empresa aérea temia extraviar a embalagem – poderia cair no mar, cogitou a funcionária.

– Mas qual é o seu receio? Que ele morra de novo? – irritou-se Margarete.

A solução foi recorrer ao serviço de transporte de cargas de uma concorrente, que também impôs entraves burocráticos para carregar o material, forçando as passageiras a perder o voo originalmente pretendido e a ter de tomar outro avião, mais tarde. No dia seguinte, no Rio, depois de uma semana de mau tempo, o 20 de julho amanheceu ensolarado. Em um barco alugado, a comerciante abriu a urna com os restos mortais do parceiro e deixou que o vento os espalhasse pela Baía da Guanabara.

Mais de dois anos depois, Margarete ainda projeta um terceiro capítulo do ritual de adeus, idealizado por ela. Ela mantém em casa uma parcela das cinzas, que pretende derramar no litoral catarinense, onde o casal costumava acampar:

– O Mauro ainda é a minha vida.

O PROCESSO

-Dependendo da empresa, a cremação é realizada dentro das próprias instalações do crematório. Há cemitérios que terceirizam o serviço, realizado, às vezes, em outras cidades.

-As cremações são individuais e devem respeitar o período de 24 horas decorridas a partir do óbito. Algumas famílias, devido a crenças religiosas, podem solicitar um prazo maior – seguidores do espiritismo costumam solicitar 72 horas. Se a cremação não é feita imediatamente após a cerimônia de despedida, o corpo é mantido em uma câmara refrigerada.

-O processo dura em torno de duas a três horas. O cadáver é cremado dentro do caixão, com as roupas. As flores dispostas sobre o corpo também são mantidas. Um detector de metais é utilizado para checar a eventual presença de um marca-passo, composto por material explosivo (o objeto costuma ser retirado antes da chegada do corpo ao local de cremação, mas um funcionário se certifica uma vez mais). Retiram-se a tampa do ataúde, por causa do vidro, e os componentes metálicos, como alças e adornos, pois são materiais que derretem. A tampa e as coroas de flores recebidas no velório são descartadas.

-Não é comum, no sistema funerário brasileiro, o reaproveitamento de caixões. Em países como os Estados Unidos, há a possibilidade de alugar o caixão, poupado no momento da cremação, o que barateia os custos. O maior volume de despesas de uma funerária corresponde à parte operacional e à disponibilidade permanente dos funcionários, não ao ataúde.

-A temperatura média do forno, abastecido por gás liquefeito de petróleo (GLP), é de cerca de 900ºC, com picos de 1.200ºC. Terminada a cremação, o conteúdo restante é recolhido do forno e aguarda-se o resfriamento. Fragmentos de ossos são colocados em um processador por cerca de 30 segundos. Tudo é passado então para a urna que será entregue à família. As cinzas costumam ser entregues a partir de 48 horas após a cerimônia de despedida.

-Em casos de morte violenta, como assassinato ou acidente de trânsito, quando uma perícia pode ser solicitada mais adiante, a cremação deve ser autorizada pelo Judiciário. As cinzas são estéreis, não contendo componente genético, o que impediria procedimento de conferência.

LARISSA ROSO

NO AVIÃO - COMO TRANSPORTAR AS CINZAS

Quem deseja transportar os restos cremados de avião deve buscar informações junto à companhia aérea – as exigências podem variar. Entre os documentos que podem ser solicitados, estão certidão de óbito e certificado de cremação. O passageiro também assina, quando solicitado, uma declaração de conteúdo. A urna com as cinzas pode ser acomodada na bagagem despachada no check-in ou em volumes de mão.
Em viagens para o Exterior, pode ser necessário providenciar traduções juramentadas de alguns papéis.

É recomendado também consultar a embaixada ou o consulado do país de destino.

Desde 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não realiza mais o controle do traslado de cinzas, o que dispensa o portador de comunicar deslocamentos aéreos ao órgão – a menos que se trate de um caso de risco à saúde pública, como morte causada pelo vírus ebola, por exemplo.

DO BÁSICO AO DIAMANTE

serviços disponíveis

Crematórios permitem adicionar uma série de incrementos aos serviços básicos. Os materiais utilizados nas urnas determinam uma ampla variação de preços – é possível escolher urnas em madeira, bronze ou material biodegradável de até R$ 20 mil.

Os valores diferem bastante entre Porto Alegre e cidades do Interior. O grupo L. Formolo, que opera seis funerárias na Serra e um crematório em Caxias do Sul, oferece um pacote simples a partir de R$ 2.680, incluindo cremação, cerimonial de despedida, máquina de café e telão na sala de cerimônias e velório online.

Por esta quantia, há também a oportunidade de acompanhar pela internet, em endereço com acesso protegido por senha, o momento em que o caixão é inserido no forno – a empresa garante que os internautas não são confrontados com a imagem das chamas. Veja, ao lado, a descrição de outros serviços disponíveis no Estado.

COLETA DE DNA

A amostra de material genético da pessoa que morreu pode auxiliar na investigação de doenças, permitindo a análise das probabilidades de manifestação em filhos, netos e bisnetos. Na preparação do corpo, uma fração de pele é coletada. O tecido pode ser armazenado por até 75 anos.

JOIA

Uma pequena porção das cinzas pode ser colocada dentro do pingente de uma gargantilha. O restante é entregue na urna escolhida pela família.

URNA HIDROSSOLÚVEL

A urna hidrossolúvel pode ser jogada no mar ou em rios, dissolvendo-se em poucos minutos. Pode também ser plantada, carregando sementes de árvores, sendo depois desintegrada pela ação do solo.
URNAS EM MINIATURA

Escolha para quando houver o desejo de distribuir as cinzas entre diversas pessoas. Cada familiar ou amigo recebe um recipiente com uma porção.
DIAMANTE

O corpo de um adulto gera em torno de três quilos de cinzas – cerca de 500 gramas podem ser encaminhados a uma empresa suíça para a fabricação de um diamante. A pedra preciosa tem valores entre R$ 17,5 mil, para o diamante bruto de 0.2 quilate, e R$ 121 mil, para o de um quilate.

COLUMBÁRIO OU NICHOS PERPÉTUOS

Quem não quiser espargir as cinzas pode optar por mantê-las em um ambiente específico para isso. No columbário, uma área interna, as famílias visitam a urna abrigada em um nicho. Os nichos perpétuos, ao ar livre, lembram jazigos de cemitério, com tampo de granito.

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