terça-feira, 1 de novembro de 2011



01 de novembro de 2011 | N° 16873
DAVID COIMBRA


A vida tem que ser nobre

Aliteratura, o cinema, o teatro e o esporte só existem porque as pessoas querem que a vida seja nobre. Uma história de ficção ou um jogo só têm sentido quando dão sentido à existência. São, a arte e o esporte, a representação da vida, e as pessoas anseiam por Justiça na vida.

Essa é a beleza de um jogo de futebol. Os torcedores sentam na pedra fria da arquibancada ou na poltrona macia diante da TV menos para ver a plasticidade do espetáculo e mais para assistir aos heróis em ação. Num jogo são contadas histórias. Pequenos dramas, comédias, tragédias ou epopeias. Essas histórias têm de dizer algo ao torcedor. Algo que ele carregue para a sua própria vida.

Aí está a origem do sentimento de amor por um clube de futebol. Um clube conta uma história para o seu torcedor. Ele, o clube, está lá, lutando todos os anos para ser feliz, como o torcedor. Ninguém torce para um banco, para uma rede de supermercados ou para uma fábrica de sabão.

São entidades como um clube, mas seu objetivo é apenas o lucro, o faturamento dos sócios, são apenas negócios e não algo mais elevado, que é o que as pessoas buscam em suas vidas. Empresas trabalham pelo lucro, clubes trabalham pela felicidade. As pessoas até podem querer o lucro, mas preferem ser felizes, e a felicidade não tem nada a ver com o lucro, porque as melhores coisas da vida o dinheiro não compra: a saúde, o amor, a amizade, a lealdade, a paz.

Para quem vai o amor

Muitos jogadores são admirados. Poucos são amados. O amor está reservado ao clube. Mas alguns jogadores se elevam acima da paixão clubística exatamente pelo que representa a sua história. É o caso particular de Ronaldinho com a torcida do Grêmio. Ronaldinho é o maior jogador já produzido no Rio Grande do Sul em todos os tempos. Foi forjado, moldado e desenvolvido dentro do Grêmio e pelo Grêmio. E tornou-se o maior desamor da torcida do Grêmio na história mais que centenária do clube.

Ronaldinho, ao mesmo tempo em que representa todo o virtuosismo do futebol, representa tudo o que o futebol não deve representar: o interesse vil pelo dinheiro, a indiferença pelo afeto alheio. Por isso, ele é um grande personagem. Porque devia ser um herói, e é um vilão. Por isso, o jogo de domingo passado foi histórico. Foi único. Foi um capítulo inesquecível do grande e interminável romance do futebol.

O novo herói

Aos 16 minutos do primeiro tempo do jogo de domingo, nasceu um herói no Estádio Olímpico. Um anti-Ronaldinho. O jovem Saimon, recém-saído dos juniores, mal descido das arquibancadas onde gritava por seus ídolos, derrubou Ronaldinho com alguma energia e levou cartão amarelo. Foi uma falta dura, mas normal de um jogo de futebol. A diferença deu-se na sequência do lance, quando ele saiu xingando o jogador do Flamengo, que sorria, debochado.

Ali estava o torcedor do Grêmio calçado de chuteiras. Saimon cresceu naquele momento. Mostrou quem é. Porque, naquele momento, entendia o que o torcedor sentia, e o representava. Será um patrão da área, Saimon. Tem personalidade e bola para fazer história no futebol.

Ronaldinho cresceu

Ronaldinho transformou-se num personagem ainda maior, neste domingo. Por seu comportamento antes, durante e depois do jogo. Antes, na hora da execução dos hinos, notava-se seu nervosismo. Todos os outros 21 jogadores estavam perfilados. Ele, não. Ronaldinho não conseguia permanecer parado, estava inquieto, ansioso, tocado pelo ambiente hostil. Depois, na hora da bola rolar, demonstrou toda a sua categoria superior.

Trabalhou com a vaia minimizando-a tocando a bola de primeira e sempre com qualidade, sem errar um passe, sem jamais vacilar. Sem ser brilhante, Ronaldinho foi perfeito no que sabe fazer, que é jogar bola. E, depois, ao fim da partida, soterrado pela vaia do torcedor do clube que ele diz ser o seu, expressou seu ressentimento, desdenhou o desprezo de que era vítima e provou, enfim, que se importava com o que estava acontecendo.

Ronaldinho é um personagem maior, depois deste domingo, porque, pela primeira vez, expôs sua alma. Justamente onde nasceu e seu criou, na intimidade do Estádio Olímpico, Ronaldinho mostrou um pouco da sua até então jamais revelada intimidade. Pela primeira vez, Ronaldinho mostrou que é humano, que é mais do que uma máquina de jogar bola.

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