Aqui voces encontrarão muitas figuras construídas em Fireworks, Flash MX, Swift 3D e outros aplicativos. Encontrarão, também, muitas crônicas de jornais diários, como as do Veríssimo, Martha Medeiros, Paulo Coelho, e de revistas semanais, como as da Veja, Isto É e Época. Espero que ele seja útil a você de alguma maneira, pois esta é uma das razões fundamentais dele existir.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
10 de junho de 2009
N° 15996 - DAVID COIMBRA
Os mortos vingativos
Vi uma velhinha sentada numa cadeira na calçada, segunda-feira. Juro que vi. Foi numa rua do Menino Deus. O dia estava frio e ensolarado, e resolvi fazer a pé um trajeto que tinha de percorrer.
O Menino Deus é o melhor bairro para se caminhar na cidade, a vida suburbana escorre por suas ruas planas, as pessoas circulam entre o pequeno comércio bem fornido de fruteiras, açougues, sapatarias, padarias.
As coisas realmente importantes da vida estão naquelas ruas. As miudezas que constroem o dia das pessoas, o pacote de Bolacha Maria do armazém, o Melhoral da farmácia da esquina, a dúzia de tachinhas da ferragem.
Então, gastava as solas das botinas debaixo dos plátanos do Menino Deus, quando a vi. Usava os cabelos brancos presos na nuca e equilibrava os óculos na ponta do nariz. Estava sentada numa cadeira de madeira, provavelmente em frente à própria casa. Fazia tricô. Nem me viu passar, concentrada que estava na peça que se formava a partir das agulhas que trançava com os dedos finos.
A princípio, temi por ela, tão sozinha, à mercê de algum mal-intencionado que por ali passasse e tencionasse subjugá-la. Depois, assimilei aquela cena como se bebesse de um tônico, como se fosse besuntado por um bálsamo. Ali estava uma réstia de civilização.
Porque a civilização tem sofrido derrotas por aqui. O Gre-Nal um dia já foi o mais belo dos clássicos, com os estádios repartidos em azul e vermelho, metade para cada um – agora é, na prática, um jogo de uma torcida só. Triste... E, dias atrás, torcedores do Corinthians incendiaram ônibus e até mataram um por causa do futebol. Por causa do futebol... Golpes duros na civilização.
Lembro de um tempo em que a cena da velhinha na calçada era usual. Meus avós moravam nos Navegantes. À noitinha, depois do trabalho, eles e os vizinhos da Rua Dona Margarida arrastavam as cadeiras da sala de casa para a calçada e se aboletavam numa roda sorvendo mate, olhando as crianças que brincavam ali perto, contando histórias.
A maioria, histórias de terror. Um homem era ladrão de sepulturas. Um dia, sua velha mãe, descobrindo que ele exercia essa pérfida atividade, o censurou e o advertiu:
– Cuidado, os mortos vingativos podem querer te arrastar para dentro da terra, para junto deles...
O ladrão deu de ombros, mas ficou com o aviso materno latejando no fundo do cérebro, como, aliás, soem ficar os avisos maternos.
Uma noite fria de inverno lá se foi ele, abrir cavoucos nos túmulos, aviltar o descanso dos espíritos. Era uma noite lúgubre, e o ladrão tremeu, lembrando-se do que a mãe lhe dissera. Prometeu a si mesmo que aquela seria a última vez que cometeria ação tão medonha. Depois daquela noite, nunca mais!
Caminhou rezando baixo pelo cemitério, o coração aos saltos, ziguezagueando por entre as cruzes. Vestia um sobretudo que esvoaçava com o Minuano cortante. Sentia frio.
Depois de pilhar o morto, já estava se retirando, cheio de temor, quando a ponta de sua capa prendeu-se na cruz. Quis correr, não conseguiu. Parecia que estava sendo sugado para o seio da terra. Para a sepultura! Acreditou que fosse um defunto que despertara em busca de vendeta e caiu no chão do campo santo, fulminado por um ataque cardíaco.
Assim eram as histórias de terror daquela época. O máximo de medo que se podia sentir sentado numa cadeira na calçada. Hoje, uma velhinha tomando sol na calçada, fazendo tricô, é razão de espanto e, ao mesmo tempo, de júbilo. Sinal de que ainda existe civilização. Um pequeno pedaço dela, mas ainda assim civilização.
Há 64 anos, uma viagem de trem
Num tempo em que Porto Alegre era civilizada, Grêmio e Inter viviam em sedes contíguas na Rua da Praia, parede com parede, sacada com sacada. Podia-se pular de um clube para outro. Anos 40, isso. O Salim Nigri era o organizador da torcida gremista. Foi ele, todo mundo sabe, o inspirado autor da frase “Com o Grêmio onde estiver o Grêmio”, depois reaproveitada por Lupicínio na confecção do hino do clube.
Pois bem. Há 64 anos precisos, num 10 de junho de 1945, Salim viveu um dia de glória. O Grêmio havia contratado um jogador famoso, o meia argentino Beresi. Sua estreia seria contra o Floriano em Novo Hamburgo.
Os 40 quilômetros até NH eram muito mais compridos na época. Os dirigentes do Grêmio decidiram fazer a desgastante viagem de trem. Chamaram o Salim e prometeram:
– Se você conseguir 60 torcedores para nos acompanhar na viagem, lotamos dois vagões e vai todo mundo de graça.
O Salim saiu pela Rua da Praia, convidando os gremistas. Em cinco dias, lotou 18 vagões. Dois mil torcedores foram a Novo Hamburgo ver o Beresi! O Grêmio ganhou por 2 a 1, gols de Massinha e Ramón Castro, um argentino que, segundo o Salim, foi o maior centroavante que já jogou no Rio Grande do Sul.
– Ele saltava um metro a mais do que qualquer zagueiro, cabeceava melhor do que qualquer cabeceador. Era o melhor! – jura o Salim.
Se o Salim diz, acredito.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário