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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
RUBEM ALVES
O direito de dormir
Será que não chega o momento em que a vida diz: "Estou cansada. Quero dormir o grande sono..."?
NÃO EXISTE IMAGEM que mais tranquilize a alma que a imagem de uma criança adormecida. Seus olhinhos fechados dizem que o seu pequeno corpo está fechado dentro de si mesmo, num ninho de silêncio e escuridão.
Mas é comum que essa tranquilidade seja precedida por uma luta contra o sono: a criança não quer dormir. Ela tem medo da escuridão. E o medo agita a alma.
Foi pensando nisso que os músicos inventaram um tipo de música chamado "berceuse", que é uma canção doce destinada a ajudar as crianças a dormir.
Ah! Como são lindas as "berceuses" de Brahms e de Schumann! Elas acalmam a criança amedrontada que mora em mim, põem os seus medos para dormir. E enquanto seus medos dormem, eu durmo bem longe deles...
Mas isso que os músicos fizeram foi apenas instrumentalizar as canções que as mães de todo o mundo inventaram para fazer seus filhos dormirem. As "berceuses" acalmam as almas das crianças.
Tudo o que existe precisa dormir. O simples existir cansa. A se acreditar nos poetas e nas crianças, até mesmo as coisas.
Minha filha de quatro anos, olhando os vales e montanhas que se perdiam de vista nos horizontes de Campos de Jordão, fez-me essa pergunta metafísica: "Papai, as coisas não se cansam de serem coisas?"
Fernando Pessoa teve suspeita semelhante e escreveu: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste, brilhar ou sorrir...".
Ele, poeta, estava cansado. Olhava para as estrelas que luziam havia tanto tempo e tinha dó delas. Elas deveriam estar muito cansadas. Suas pálpebras jamais se fechavam. Seus olhos estavam sempre abertos, sem poder dormir jamais...
Pergunto-me então se não haverá um simples cansaço de viver. Será que não chega o momento em que a vida diz, das profundezas do seu ser, como um pedido de socorro aos que entendem a sua fala: "Estou cansada. Quero dormir o grande sono..."?
Os especialistas na arte da tortura descobriram que uma das técnicas mais eficazes e discretas para se obter a confissão de um torturado era a de impedir que ele dormisse. Assentado numa poltrona confortável, o prisioneiro espera.
O tempo passa em silêncio, sem interrogatório. Vem o sono. As pálpebras pesam e querem se fechar. Mas alguém que o vigia o sacode para impedir que ele durma. E assim o tempo vai passando.
O desejo de dormir vai crescendo, as pálpebras pesam até um ponto insuportável. Nesse momento, a necessidade de dormir é tão terrível que o prisioneiro está pronto para confessar qualquer coisa só para poder dormir.
Foi coisa parecida que fizeram com a Eluana Englaro, mulher italiana com 38 anos de idade, dos quais 17 em vida vegetativa.
Seu sono sem despertar dizia que ela desejava dormir. Mas os torturadores, a ciência, as leis e a religião lhe negavam esse direito.
Obrigavam-na a continuar viva contra a vontade do seu corpo, que ansiava pelo grande sono. Ligaram seu corpo a máquinas que impediam que ela dormisse. Vivia mecanicamente.
Finalmente o direito de dormir lhe foi concedido. Fantasio que ela dormiu como uma criança, ouvindo a "berceuse" de Brahms.
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