sábado, 14 de fevereiro de 2009



15 de fevereiro de 2009
N° 15880 - Cláudia Laitano


Compartilhe, mas não exagere

Tive uma colega de faculdade que adorava ficar de pés descalços durante as aulas. Chegava, instalava uma cadeira vazia na sua frente, descalçava as sandálias (o espetáculo era sazonal) e acomodava os pés sobre o assento, apontando os dedões para o infinito celeste.

Alguns rapazes, vocês sabem, são tarados por pés femininos. Não lembro se os da minha colega eram especialmente bonitos ou não – nem imagino que tipo de energia erótica eles mobilizavam na ala masculina. Mas, diga-se em favor da moça, não era por exibicionismo que ela liberava os calcanhares para a contemplação pública.

Havia, isto sim, uma espécie de manifesto silencioso pela liberdade de expressão, um discurso em defesa da informalidade e contra todo o tipo de convenções sociais – inclusive as do ambiente teoricamente formal de uma universidade. Bem-vindos ao século 21.

Entre os flagrantes de intimidade exposta (e imposta) publicamente, poucos me incomodam tanto quanto a exibição de um pé descalço fora do contexto apropriado – praia, piscina, congressos de podófilos, show da Maria Bethânia...

É uma bronca pessoal, com motivações inconscientes que eu nem me atrevo a investigar, mas talvez tenha lá sua razão de ser - mesmo levando-se em conta que os limites entre a liberdade individual e a falta de noção nem sempre são tão rígidos quanto a distância entre as duas tiras de uma havaiana.

Há pessoas de aparência perfeitamente sensata que apreciam compartilhar com amigos e colegas de trabalho momentos de higiene pessoal que, em princípio, deveriam ficar restritos ao ambiente doméstico: cortam e limpam as unhas, espalitam os dentes, expremem os próprios cravos e os alheios (ninguém nunca está seguro...).

Mais higiênicos, mas não menos expansivos, são os compartilhadores compulsivos de dramas pessoais. Você senta no táxi e antes de dobrar a primeira esquina o motorista já contou que foi traído pela mulher, que ela nem foi visitá-lo quando a mãe morreu, que a danada não presta mas ele ainda é louco por ela...

Você vai buscar um suco no bar e ouve tudo o que nunca quis saber sobre a disfunção erétil do marido da sua colega.

E o pior é que muitas vezes o destino da inconfidência nem mesmo são os seus ouvidos. Tudo não passa de um incidente acústico, um papo de amigas falando com o controle de voz distraidamente ajustado no volume máximo.

(Se as orelhas passam boa parte do tempo ocupadas com celulares e fones de ouvido, fala-se cada vez mais alto e, consequentemente, para mais pessoas em volta. Bem-vindos ao século 21.)

O seriado Friends (1994 – 2004) cunhou um bordão insuperável para designar esse excesso de compartilhamento de informações, às vezes cabeludas, não solicitadas: “Share not skare” (em uma tradução muito livre, algo como “compartilhe, mas não exagere”).

Mas como saber se o que para nós é natural e faz parte do nosso direito à liberdade de expressão não está ferindo o direito da outra pessoa de não ver os nossos pés, não ouvir nossos problemas, não acompanhar a exterminação dos nossos cravos?

Não há fórmula infalível para lidar com esse tipo de dilema existencial. Mas, em caso de dúvida, sempre é bom dar uma checada no ambiente antes de invadir o espaço alheio com os nossos dedões em riste.

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