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domingo, 8 de fevereiro de 2009
FERREIRA GULLAR
A foto como alquimia
Dizer que Vik Muniz é fotógrafo é dizer muito e dizer pouco; sua arte, que usa a foto, vai além
ALGO DE inusitado aconteceu mês passado no terreno das artes plásticas no Rio de Janeiro, ou melhor, no Brasil: a exposição de fotografias de Vik Muniz, no MAM, que atraiu um número nunca visto de visitantes em seu vernissage. E mais, não era o público que habitualmente se vê em vernissage.
Não me refiro apenas aos catadores de lixo, que são tema de algumas das obras expostas e foram convidados pelo artista para a inauguração da mostra; além deles, havia gente de todo tipo, de diversas áreas artísticas e profissionais, sem falar no público anônimo que, em tal escala, não costuma ser visto nessas ocasiões.
Acrescente-se o fato de que, como pude observar, as pessoas se mostravam efetivamente interessadas nas obras expostas e muitas delas entusiasmadas com o que viam.
Mas quem é Vik Muniz? É um artista brasileiro, fotógrafo de renome internacional. Mas dizer que ele é fotógrafo é dizer muito e dizer pouco, porque a sua arte, que tem por instrumento básico a fotografia, vai além. Mais fácil do que defini-la talvez seja descrevê-la.
Ou tentar descrevê-la. Tomemos, como exemplo, as fotos feitas com chocolate ou o autorretrato montado com centenas de pequenos objetos coloridos, como miniaturas de carros, bolas, lápis, cornetas, botões, colheres, garfos, bichinhos de todas as cores e formas, amontoados arbitrariamente, mas dispostos de modo a formar um rosto, os olhos, o nariz, a boca e os dedos que apoiam a testa.
De longe, uma mancha colorida e, de perto, esse amontoado de coisinhas, brinquedos etc. O que significa isso? O que nos quer dizer Vik Muniz com isso? Quererá dizer-nos que ver é ilusão? Vejamos.
Adiante me deparo com uma paisagem toda escura: duas árvores à esquerda com um lago ao fundo e, à direita, um homem sentado. Lembra o paisagismo dos pintores românticos, sem cores, antes da explosão cromática do impressionismo. É isso?
Aproximo-me e eis o que vejo: não são árvores de verdade; o homem, o chão, o mato das margens do lago são feitos de linha, maçaroca de linhas de costura, fios de algodão negro, emaranhados de tal modo e de tal modo dispostos que se tornam troncos, caules, folhas, cipós, ramagens.
Falsas coisas, feitas de fios de linha que, fotografadas, iludem-nos e, ao mesmo tempo, revelam-se, espantam-nos e ali estamos nós, fascinados pela ilusão que aconteceu e se desfez. Não são coisas reais, são imagens feitas de fios. São coisas feitas de outra verdade: a ilusão do olhar. Esse sujeito é maluco, penso, desconcertado, mas tomado de encantamento. E sigo em frente.
Agora tenho diante de mim o que me parecem enormes desenhos, que me lembram alguém: sim, Piranesi. Leio na etiqueta: "baseado em Piranesi". Mas vejo que, de fato, não são desenhos e, sim, construções imitando rabiscos a nanquim, feitos de fios de arame, fotografados. Desta vez, ele não usa o objeto material -o arame- para fingir a imagem da coisa e, sim, para fingir o traço que a esboça, outro modo de nos iludir.
Bem, não seria possível descrever cada obra exposta, que vai desde as imagens feitas de poeira ao tríptico ("O Jardim das Delícias") de Hieronymus Bosch, construído com peças de quebra-cabeças e pequenos bonecos de plástico: vê-lo é como entregar-se a uma vertigem.
E que dizer da "imitação" da célebre "Catedral Rouen", de Claude Monet, feita de matéria que lembra areia colorida ou açúcar? A fachada dessa catedral ganha um impacto novo. Em vez de registrar a realidade, a fotografia de Vik a reinventa.
Por último, mencionarei "O Nascimento de Vênus", baseado na célebre pintura de Botticelli. Como sempre, a obra, vista de uma distância normal é uma coisa; vista de perto, é outra: o que pareciam sombras marcando as dobras das vestes, são na verdade pequenas peças de ferro, ruelas, porcas, parafusos, minúsculas molas... lixo de uma oficina mecânica. E penso: "É uma alquimia que transforma lixo em beleza".
Vik Muniz também brincou com a Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, mas não lhe pôs bigodes e barbas, como o fez Duchamp: ele a refez usando manteiga e geleia, matérias perecíveis que, na imagem fotografada, ganham permanência.
Versando obras-primas da pintura, não tenta "desmistificá-las" ou destruir-lhes a aura. Magicamente, as atualiza nessa nova linguagem, que só a fotografia possibilita.
A beleza consagrada, refeita com a ajuda de outros materiais (rodelas de papel, objetos de plástico, peças de metal, lixo), renasce outra no diálogo entre o banal e o poético, o real e o sonho, o verdadeiro e o ilusório. Aqui, ver é delírio.
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