quarta-feira, 5 de janeiro de 2022


05 DE JANEIRO DE 2022
DIOGO OLIVIER

Os dois capitães

Nunca mais esquecerei porque foi no dia da morte de meu pai. Ele lutava contra complicações decorrentes de um acidente de carro na BR-290, a rodovia assassina. Estava inconsciente, porém estável. Nunca entendi direito esse conceito de estabilidade quando uma pessoa está na CTI de um hospital, ao menos do meu ponto de vista leigo, porque estabilidade passa a ideia de serenidade, e não há nada de tranquilo em seguir atrelado a uma cama sem abrir os olhos. Clinicamente, esse era o ponto, meu pai não piorava e nem melhorava há semanas. Tínhamos de tocar nossas vidas, ainda que com parte do coração ali no Moinhos de Vento, na luta diária pela vida ao lado dos médicos.

O ano era 2014. Fui ao Rio para o Troca de Passes, programa do SporTV. Comigo na bancada, Carlos Alberto Torres, capitão da Seleção de 1970 e um dos ídolos de meu pai. Ele iria gostar de me ouvir sobre como foi a resenha, pensei, apesar da descrença na recuperação. Ainda no camarim, antes de irmos para o ar, falei que meu pai era fã e expliquei do acidente.

Quando eu disse que ele talvez não visse a foto que faríamos juntos, ele me interrompeu.

- Pensa no que a gente pode fazer por ele agora. O que está ao nosso alcance nesse instante? Tirar esta foto, certo? Então vamos tirar a melhor foto do mundo, pensando nele. Olha lá (e apontou a câmera) e sorri o melhor sorriso do mundo, &$#*!

O líder de verdade é escolhido pelos liderados. Não pelo que diz, mas pelo que faz pensando no bem comum. É daí que vem a sua força. Assim Churchill convenceu a Inglaterra, a Europa e, de certa forma, também os EUA a juntar esforços contra o nazismo. Mandela forçou seus algozes a libertarem-no sem concessões, pôs fim ao apartheid e governou para brancos e negros igualmente. Carlos Alberto uniu estrelas que nosso futebol teve numa única Copa. A genialidade de Pelé. O temperamento de Rivellino. A carioquice de Gerson. A intelectualidade de Tostão.

Tirei aquela foto e pensei como deve ter sido no vestiário do Estádio Azteca. Pobre Itália.

Uma breve analogia nos permite concluir que Bolsonaro é capitão como era Carlos Alberto - que nos deixou em 2016, aos 72 anos, vítima de ataque cardíaco. É inacreditável pensar como um político teve a chance de se consagrar, de ficar na história como um homem bom, mas jogou tudo fora. Bastava reunir médicos e governadores em um grande movimento nacional suprapartidário sem cor ideológica para, com a solidariedade das pessoas, claramente dispostas a fazer a sua parte, reduzir ao máximo o número de mortes por covid-19.

TODOS apoiariam. Gaviões da Fiel e Mancha Verde trocariam camisas em ações conjuntas. Catarina da Rússia se ofereceu como cobaia de uma vacina ainda insegura contra a varíola, confiando nos cientistas de sua época. Após assumir o risco, defendeu a vacinação em massa. Isso no século 18. Morreu aos 70 anos, e não foi de varíola. Bolsonaro, além de duvidar dos efeitos da covid-19 e flertar com movimentos antivacina, agora alcança o Grande Erro: age para impedir crianças de se imunizarem e viverem suas vidas em segurança. Se continuar, pode se complicar com a Justiça lá na frente.

Nunca foi tão fácil fazer o certo e se tornar o líder que todo presidente é eleito para ser. Bastava um gesto, como os de Carlos Alberto, seja para erguer a taça Jules Rimet ou confortar um anônimo com o pai enfermo.

Bem, há capitães e capitães.

David Coimbra está em férias - INTERINO

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