04 DE MAIO DE 2021
LUÍS AUGUSTO FISCHER
A carta, lembra?
Ontem, completaram-se 14 anos da morte do meu irmão, Sérgio, vulgo Prego, que também era meu colega de profissão. Amanhã, meu pai, Bruno, completa seus 89 anos, também ele professor, também de língua materna (e de Latim, ele). Não é só por aí que se explica uma certa melancolia que me tomou por estes dias.
Para além disso e do mais de ano em isolamento, sem abraçar os amigos e parentes, sem brincar abertamente com as crianças da família - a Lia vai completar um ano daqui a pouco, e eu ainda não a peguei no colo! -, sem sair para encontrar qualquer um que interessasse a qualquer momento, para além disso tudo tem um livro, que ainda estou lendo mas que desde já recomendo vivamente: Celso Furtado - Correspondência Intelectual - 1949-2004 (Cia. das Letras).
Do autor, li o sempre vivo Formação Econômica do Brasil, além de uns quantos artigos e de sua obra de memória, espalhada em três volumes de leitura fácil (como escrevia bem!) e instrutiva. E agora essa beleza, umas 300 cartas, mandadas e recebidas, selecionadas de um acervo de mais de 15 mil cartas. Em papel.
Furtado foi um dos mais importantes intelectuais brasileiros de sua geração, que é também a de Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Paulo Freire e do nosso Ernani Maria Fiori. Nascido em 1920, fez um raro doutorado em Paris no pós-Segunda Guerra e de lá voltou para ajudar na invenção do Brasil moderno - sua parte era o planejamento estratégico, que pensava o país muitas gerações adiante. Foi cassado na primeira lista do golpe de 64, junto com tanta gente boa que foi sacrificada por uma ditadura que, além de tudo o mais, sacrificou o futuro democrático numa sociedade menos desigual, que estava sendo gestado naqueles anos.
A conversa escrita de Furtado com uma série ampla de interlocutores, nacionais e internacionais, que se pode ler no volume organizado por Rosa Freire D?Aguiar, dá notícia da brutalidade e da truculência, mas também dos sonhos e da vontade de fazer o Brasil abandonar sua condição subordinada para ganhar estatura maior, para propor-se um destino altivo.
Após 20 anos fora, lecionando a maior parte do tempo nos mais prestigiosos cursos de Economia na França, nos EUA e noutras partes, sempre com foco no desenvolvimento do Brasil e da América Latina, Celso Furtado teve a humildade de aceitar o ministério da Cultura, na floração da Nova República. Esta república que o atual presidente quer enterrar, para nos devolver a uma condição de meros exportadores de commodities primárias, ao custo do nosso futuro, que vai sendo destruído sistematicamente, da ecologia à nossa íntima esperança. E com o aplauso de gente que, bá, não sei como pode se olhar no espelho.
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