sábado, 2 de dezembro de 2023


02 DE DEZEMBRO DE 2023
ARTIGO

UM JEITO DE SER FLOR

SOBRE PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E IMPERFEIÇÕES DO CORPO HUMANO

Atribui-se a Fernando Pessoa a citação "o valor das coisas não está no tempo em que duram, mas na intensidade com que acontecem: por isso existem momentos inesquecíveis, fatos inexplicáveis e pessoas incomparáveis". Na vida cotidiana, todos vivenciamos, em maior ou menor grau, algum destes eventos. Todos temos histórias especiais para contar. Entretanto, há aqueles tornados famosos justamente pela intensidade de suas vivências, além de seu caráter perene. Quando tais vivências trazem em si imperfeições do corpo humano, o significado transborda.

No filme Extraordinário (2017), um garotinho nascido com uma discrepância física na face passa por muitas intervenções cirúrgicas para uma composição mais harmoniosa. O desafio da criança é, com seu rosto cicatrizado, enfrentar a escola, lugar onde nunca esteve. Lá vai aprender, fazer amigos, ganhar e perder, desenvolver autonomia, interagir com diferentes pessoas - tudo aquilo que é treino para a vida. Ao final (spoiler!), é agraciado com uma espécie de láurea - não acadêmica, mas de virtudes. Recebe o prêmio por ter sido capaz de fazer aflorar nos outros o melhor que cada um traz em si, a despeito de (ou talvez, por isso mesmo) sua escancarada "deficiência".

Se há adjetivo que se serve de toda sua semântica para definir algo ou alguém é a palavra intensa, quando se fala de Frida Kahlo. A pintora de uma perna mais fina que a outra, sequela da poliomielite na criança, sofreu um trágico acidente durante um passeio de bonde pela Cidade do México. Incontáveis cirurgias sucederam-se, meses consecutivos acamada, uma readequação definitiva de planos. 

A dor, física e emocional, fez-se companhia inseparável dali em diante, ajudando a moldar tanto sua vida quanto sua arte. Frida não se escondia de sua dor: pincelava autorretratos com suas muletas e coletes ortopédicos desconfortáveis usando os matizes mais coloridos e vibrantes de que dispunha. Com a mesma eloquência de suas telas cuidava de suas vestes e adornos. Trazia cor às saias rodadas e flores nos cabelos, destacando o que, em seu corpo ora fragilizado, ainda podia ser perfeito.

Stephen Hawking, contra todas as expectativas e probabilidades, desdenhou a ciência do cosmos, pela qual trabalhou para decifrar. Ironizou de forma delicada e, por vezes, atrevida, as previsões de sobrevivência de sua doença. Em vez de um sentenciado à incapacidade permanente de falar, vestir-se e alimentar-se sozinho, escreveu seu nome no rol dos físicos brilhantes.

A escritora e ativista social Helen Keller perdeu visão e audição com menos de dois anos de idade, o que não a impediu de construir uma carreira notável em defesa do voto feminino, direitos dos trabalhadores e de pessoas com deficiência. Viajou a 35 países palestrando sobre suas ideias. Primeira mulher cega e surda a graduar-se no Ensino Superior, dizia que não se devia engatinhar se o impulso era voar.

Ludwig van Beethoven, gênio musical, dono de um ouvido absoluto, parou de escutar com cerca de 27 anos. Contudo, dado seu grande talento e persistência, seguiu compondo sinfonias magníficas até próximo de sua morte.

Segundo o dicionário, o termo ordinário conceitua-se por "comum, conforme ao costume, que se repete regularmente ou se faz presente a todo instante". O extra, portanto, lhe confere mais, lhe define como além. O anômalo condiciona o inusitado, comporta o singular e, por isso mesmo, transforma em original. Não deixa de ser deboche que a própria imperfeição construa o caminho para o raro, o especial.

Quiçá tivesse mesmo de ser assim: para ser destaque, há de ser intenso, diferente. Para gerar aprendizado, precisa ser marcante. Como as flores que, usando de sua beleza (e não é também uma excentricidade?), atraem os insetos que então, de beijo em beijo, disseminam o pólen contribuindo de forma decisiva para sua perpetuação. A beleza da flor, da mesma forma que uma imperfeição do corpo humano, desafia. Provoca. Encara. Coloca-se em entrega, aberta, explícita, e solicita o mesmo de quem lhe olha. E o que era desigual e inconforme acaba por fazer criar. Cria vida.

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