01 de março de 2017 | N° 18781
PEDRO GONZAGA
A VERDADEIRA FOLIA
Da minha vida extinta de tradutor profissional guardo, acima de tudo, um aprendizado: quão assombrosas, quão intransponíveis podem ser certas expressões de um idioma, em suas construções populares, tradicionais ou revolucionárias, nos usos literários que dependem do som, e eu diria até do aspecto visual das palavras. Por exemplo. Somebody has to put him out of his misery. Literalmente, “Alguém deveria libertá-lo de sua miséria”. Faz sentido em português? Creio ser compreensível, mas não utilizável. Outra escolha teria de ser feita, boa ou má, alguma coisa se perderia.
Tudo bem, é do ofício. O que me parece lamentável é que processo semelhante venha ocorrendo no português dentro do português. Como há textos – e são tantos nas redes – surdos e cegos à língua, de maus tradutores nativos, preocupados tão-somente com a adesão de seus leitores. Nada produz maior dano ao estilo, como bem apontava o poeta Joseph Brodsky, do que o estilo dos ideólogos, a simplificação barata da razão (que leva aos chavões), e a exploração banal dos sentimentos (que leva ao sentimentalismo). Para ele, a literatura seria uma vacina contra o maniqueísmo por sua natural diversidade, por sua busca incessante de um maior poder de revelação verbal.
Mas eu falava de expressões, e admito que me perdi, fui para o inglês quando queria falar de uma brasileira, das antigas, saborosa em suas ameaças e seus mistérios: “conhecer alguém de outros carnavais”. E aí está um fenômeno que só acontece no original, em sua ambiguidade: somos convidados a rejeitar o sentido primeiro, mas nunca o perdemos totalmente de vista.
Quando alguém diz, “te conheço de outros carnavais”, uma parte em mim sabe que é um modo de falar, mas outra imagina as duas pessoas num baile esfumaçado da SAT, em batalhas de confete e serpentina, tresandando lança-perfume, suor e cachaça, cantando marchinhas ora polêmicas, escondidos nos cantos mais escuros do salão.
Mas era só no sentido figurado, alguém dirá.
Ao que contraponho que ler é ler tudo, tudo junto, na mais delirante e íntima das folias, onde tudo vale, ou quase tudo. Pós-verdade e palavras de ordem estão com os títulos temporariamente suspensos.
Até que encontrem fantasia bem espalhafatosas.
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