quinta-feira, 30 de abril de 2015


30 de abril de 2015 | N° 18148
ARTIGO - HUMBERTO TREZZI*

BANHO DE SANGUE NUM PORTO NÃO TÃO ALEGRE

Esta semana, foi no bairro Sarandi, coração da Zona Norte, dois sujeitos liquidados a tiros dentro de um caminhão, em frente a outros motoristas. Alguns dias atrás, foi um rapaz, executado com mais de 20 tiros dentro de um ônibus cheio de passageiros, na movimentada esquina da Ramiro Barcelos com a Farrapos.

Ontem, foi na Restinga, um menino com antecedentes por assalto assassinado em seus tenros 12 anos de idade. Tudo à luz do dia, repleto de testemunhas. Os assassinos definitivamente perderam o pudor e o temor em Porto Alegre, que vive uma orgia de homicídios.

Não só a Capital. Os homicídios aumentaram 68,6% em uma década no Rio Grande do Sul como um todo. Crescem quase que ano a ano. O curioso é que esse banho de sangue vem na contramão de grandes metrópoles brasileiras, como São Paulo e Rio. As duas deixaram há muito de ser as capitais mais violentas do país. Os paulistas, aliás, convivem há 15 anos com redução nos homicídios (excetuados ligeiros aumentos pontuais).

A subida nos homicídios no Rio Grande do Sul é algum reflexo da crise econômica? Não. Até porque estávamos em pleno emprego quando começou essa ascensão mortífera. E fatores econômicos também teriam afetado outros Estados, que no entanto recua- ram no volume de assassinatos.

Parte da explicação parece estar numa espécie de falência moral: a ideia de que crime compensa e a melhor resposta aos inimigos é a bala. O economista Cristiano Aguiar de Oliveira abordou o assunto no excelente artigo “Análise espacial da criminalidade do Rio Grande do Sul”, publicado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Problemas na estrutura familiar e a ineficiência do ensino no Estado ajudam a aumentar a criminalidade, pondera o estudioso. Faz sentido. Escola e família são fundamentais no processo de desenvolvimento moral do indivíduo. Quando falham na sua missão de garantir a inserção no mercado de trabalho lícito e passar valores aos jovens, a coisa se agrava.

Um agravante, no RS, é a carência no número de policiais. O contingente diminui desde os anos 80. São Paulo e Rio, por exemplo, são proporcionalmente muito mais policiados. Sem investimento à vista, nos resta a esperança de que o homicídio sature. Alguns experts acreditam nessa exaustão: em algum momento, a bandidagem gaúcha vai cansar de acertar contas a tiros (e nos acertar). Será? Amém.


*Jornalista, repórter especial de ZH humberto.trezzi@ zerohora.com

30 de abril de 2015 | N° 18148
L. F. VERISSIMO

Etimológicas

“Corrupção” vem do latim “rumpere”, ou romper, quebrar.

“Corrumpere” quer dizer quebrar completamente, inclusive moralmente, o que significa que quem foi corrompido não tem conserto. O mais inquietante é que da mesma origem latina vem a palavra “rota”, através de “ruptura”, que virou “rupta” no latim vulgar, um caminho aberto ou batido, e que está na origem do francês “route”, de “rota” e de “rotina”. Quer dizer, há poucas esperanças da corrupção deixar de ser uma rotina no Brasil. Até a etimologia está contra nós.

“Escândalo” está indiretamente ligado aos pés. Sua raiz indo-europeia é “skand”, pular ou subir, de onde também vem escalada. Quem pula ou sobe precisa cuidar onde põe os pés, e o grego “skandalon” significa um obstáculo ou uma armadilha. “Scandalum”, em latim, tanto pode significar tentação como armadilha. No francês antigo, “scandal” era um comportamento antirreligioso que agredia a Igreja todo-poderosa, e, da mesma origem, existia a palavra “sclaudre”, de onde vem o inglês “slander”, ou difamação. Portanto, antes de acusar, pense em onde vai botar os pés.

Alguns escândalos, de tão não investigados, acabam virando anedotas. “Anedota” vem, através do francês “anecdote”, do grego “anekdotos”, história não publicada, presumivelmente tanto no sentido de inédita quanto no sentido de versão não oficial, secreta, clandestina. Enfim, história do tipo que em Brasília todo mundo sabe mas a gente não fica sabendo. Em francês queria dizer pequeno relato ilustrativo à margem de um relato maior.

No seu sentido brasileiro, continua sendo uma história marginal, só que engraçada, ou se esforçando para ser. Sobrevive, na anedota, a tradição homérica da literatura oral, passada de geração a geração sem necessidade de escrita. Se for escrita, deixa de ser anedota.

Muitos contadores anotam o fim da anedota para não esquecê-la, mas se sentiriam heréticos se a escrevessem toda, apesar do risco que correm de esquecerem o resto e ficarem com uma coleção de últimas frases sem sentido. Tipo:

“E aí o marido vingativo gritou para a mulher dentro da jaula do gorila: ‘Diz para ele que você está com dor de cabeça, diz!’”.


“E aí o cara só de cuecas no meio de um bolo de gente disse ‘E eu, que só vim entregar uma pizza?’”.

30 de abril de 2015 | N° 18148
ARTIGOS - CAROLINA MAYER SPINA ZIMMER*

ABAIXO A TERCEIRIZAÇÃO

Impossível não dizer que estou de luto. Todos os trabalhadores estão de luto. Pelo quê? Pela tentativa de assassinato da CLT pela grande maioria dos deputados federais. Na faculdade, quando se iniciam os estudos da disciplina de Direito do Trabalho, revivem-se as aulas de História, porquanto somos todos convidados a relembrar momentos importantes na evolução da sociedade, a fim de entender os porquês do surgimento das normas de proteção ao trabalhador.

Estamos mais maduros para observar que os princípios da autonomia da vontade e da igualdade dos pactuantes não são plenamente aplicáveis às relações de emprego. Justifica- se: empregador e empregado jamais estiveram e jamais estarão na mesma condição hierárquica. Por essa razão, nasce todo o aparato legislativo, isto é, o Estado – percebendo todos os abusos praticados, desde a Revolução Industrial, em que as jornadas de trabalho eram excessivas, os salários baixíssimos, as mulheres e as crianças sofrendo exploração, sem contar as inúmeras mortes em decorrência da sujeição às péssimas condições de trabalho – notou que deveria zelar para que as relações de trabalho fossem reguladas pela justiça e pela equidade.

O individualismo cede lugar ao dirigismo contratual e a suposta autonomia da vontade finalmente é mitigada, ou seja, empregados e empregadores são livres para contratar, desde que o núcleo mínimo de direitos fixados por esse Estado seja respeitado.

Ao aprovar o Projeto de Lei 4.330, a Câmara dos Deputados não só deixou de lado todo esse histórico de conquista de direitos, como aniquilou qualquer esperança de que esse Legislativo renovado seja capaz de se preocupar, de fato, com os interesses sociais e coletivos. E mais chocante ainda é perceber que alguns, que se apresentam como defensores das ideias sindicais e das relações trabalhistas, foram os primeiros a capitanear a urgência na votação dessa celeuma.

Não esqueçamos que o empregado de hoje será o terceirizado de amanhã; esse terceirizado ganhará menos e trabalhará mais, o que significa se despedir de um dos pilares básicos das relações empregatícias: a proteção. O deputado escolhido por mim votou contrário a essa aberração. E o seu?


*Advogada trabalhista e professora universitária

30 de abril de 2015 | N° 18148
LUCIANO ALABARSE

FANTASMA DE SI MESMO

Quarenta anos atrás, assisti a Viva o Cordão Encarnado, espetáculo com o qual duas jovens atrizes, Elba Ramalho e Tânia Alves, lançavam-se também à carreira de cantoras. O Teatro Brigitte Blair, um pulgueiro incrustado na Copacabana carioca, tinha um ar decadente de dar dó. Na bilheteria às moscas, chegaram só mais dois casais. Os homens vestiam roupais normais. As mulheres, porém, estavam produzidas como se fossem a uma noite de gala no Carnegie Hall. O Rui não aprovaria.

Prestei atenção à conversa do quarteto. Gaúchos em férias, queriam ver teatro, coisa que não faziam aqui porque “em Porto Alegre não havia bom teatro”. Elba e Tânia fizeram o espetáculo como se não houvesse amanhã. O quarteto saiu se coçando e falando mal da sala, eu fui cumprimentar as atrizes. Esse episódio me veio à memória ao ouvir Do Meu Olhar pra Fora, excelente novo disco de Elba, de quem continuo fã.

Vinte anos depois, estreei Sei que Estou Errada, show que juntava Adriana Calcanhotto, Annie Perec e Tânia Carvalho no Porto de Elis. Por causa da Tânia, pessoas que nunca colocariam o pé naquele lugar iam lá e se encantavam. Uma delas, em êxtase, me agradeceu por estar se sentindo “nos melhores porões de Berlim”. Sim: o que dá pra rir dá pra chorar.

Cidade boa é a que valoriza a si e aos seus. Mas nossos tigres de papel, com pose de “cidadãos do mundo”, renegam sua aldeia e fazem questão de não acompanhar a vida cultural local. Essa indiferença demonstra só um provincianismo anacrônico, nada mais.

Como um esquerdista que começa a guardar dinheiro na cueca, quem renega sua história e nega seus erros, pessoais ou partidários, desconecta-se da realidade e vira um fantasma de si mesmo. Os fantasmas locais existem, e, compulsivos como o pai de Hamlet, adoram falar mal de Porto Alegre. Como diria o Billy Blanco: “Pra que tanta pose, doutor, pra que esse orgulho?”.


Até que alguém de fora descubra e elogie a prata da casa, haja paciência e exorcismo. Caranguejos? Tô fora.

quarta-feira, 29 de abril de 2015


29 de abril de 2015 | N° 18147
DAVID COIMBRA

Negros americanos e negros brasileiros

Os vendedores de rua de Nova York oferecem, por um punhado de dólares, uma placa com fotos de quatro dos maiores homens da Humanidade. Quatro negros, postos lado a lado: Martin Luther King, Malcolm X, Mandela e Obama. Por coincidência, três desses homens moraram bem aqui, em Boston. Não por coincidência, os três são americanos.

O fato de três desses quatro gigantes serem negros e americanos diz muito sobre, exatamente, os negros americanos. E explica, em parte, o que está acontecendo em Baltimore e em outras cidades do país, em que negros protestam contra a violência policial.

Curiosamente, tudo isso tem a ver também com o Brasil. Porque Estados Unidos e Brasil partilham o mesmo e enorme pecado: a escravidão. Essa é a causa de inúmeros problemas dos dois países, embora seus efeitos sejam diferentes.

Em primeiro lugar, é preciso compreender que os Estados Unidos são uma terra de estrangeiros. No bairro em que moro, entre 58 mil pessoas, são faladas, oficialmente, 50 línguas. Gente do mundo inteiro convive aqui. Africanos dirigem táxis, vietnamitas são manicures, brasileiros trabalham como faxineiros, colombianos, na construção civil, chineses vendem bugigangas nas ruas, italianos têm restaurantes. Judeus de solidéu, árabes de manto e indianos de turbante brincam com os filhos na mesma praça. Na Califórnia, a segunda língua mais falada é o coreano.

Em Boston, 3 mil espanhóis trabalham na sede americana do Santander. No fim de semana passado, houve um festival de cultura nipônica no Common Park, de Boston, com bandas japonesas tocando rock’n’roll.

Não é à toa que a bandeira de listras e estrelas tremula em toda parte. É preciso lembrar às pessoas que elas estão nos Estados Unidos.

O que une todos esses estrangeiros e seus descendentes é que eles estão aqui por vontade própria. Uns vieram “para fazer a América”, outros fugiam da opressão, alguns iam passar um tempo e ficaram, mas todos estão nos Estados Unidos porque querem.

Menos os negros.

Os negros foram arrancados à força da África.

Faz toda a diferença.

Quando a escravidão foi abolida nos Estados Unidos, no fim da Guerra Civil, em 1865, os negros eram cerca de 4,5 milhões, entre quase 40 milhões de habitantes. Quando a escravidão foi abolida no Brasil, um quarto de século depois, os negros eram também 4,5 milhões, só que a população total era pouco mais do que duas vezes isso. Essas proporções mais ou menos se mantiveram. No Brasil, os descendentes de escravos talvez sejam 50% da população; nos Estados Unidos, que têm quase o dobro de habitantes, são 12%.

Esses 12% de negros americanos são, de certa forma, cidadãos apartados de todos os outros cidadãos americanos, entre esses até os que não nasceram nos Estados Unidos. Um negro que seja descendente de pessoas que aqui chegaram em 1620, quando os primeiros africanos pisaram no solo da América do Norte, esse homem com pais, avós, bisavós e tetravós americanos, esse americano antigo de quase quatro séculos, esse americano histórico talvez se sinta menos à vontade nos Estados Unidos do que um russo que chegou no inverno passado e mal sabe falar inglês.



E esse sentimento é diverso do sentimento que embala os negros brasileiros. Mas, como o assunto é complexo e rico, vou tratar mais disso amanhã. Não é continuação, não fique brabo. Vou contar por que nosso grande defeito é, de certa maneira, uma vantagem.

29 de abril de 2015 | N° 18147
MOISÉS MENDES

Gente atrapalha

Lidar com gente. Esse passa a ser o charme das empresas a partir dos anos 80. Qualquer fábrica poderia produzir bons carros, parafusos ou televisores. Mas só iriam prosperar as que soubessem lidar com seus clientes externos e internos. Sim, o funcionário também passou a ser tratado como cliente.

Best-sellers de gestão difundiam que uma empresa sem uma missão clara não existia. As corporações ofereciam exemplos de missão. Com as pessoas sempre em primeiro lugar.

Milhares de livros tinham receitas para que qualquer empresa aprendesse a lidar com humores, talentos, fora de série e medianos, com virtudes e imperfeições. Organizações de todo porte revisaram processos para melhorar performances ou, nas reengenharias, para se livrar dos empregados vistos como superados, pouco competitivos ou excedentes.

Virando a Própria Mesa, o best-seller da gestão horizontal, de Ricardo Semler, enfeitava a mesa dos chefes arejados. Um pouco depois, outro cara brilhava: John Frances Welch Jr, ou simplesmente o Jack, presidente da GE. Sua revolução na GE só havia acontecido por causa das pessoas.

Parecia óbvio demais. No início dos anos 2000, o americano publicou suas memórias em Jack Definitivo. Dizia: uma empresa deve, antes de qualquer coisa, identificar qual é a sua índole e a sua missão no mundo, muito mais do que as competências, para assim moldar sua cultura.

O homem da GE queria ser chamado pelos funcionários de Jack. Nada de John ou de Welch, simplesmente Jack. Não almejava criar falsas intimidades, mas transmitir abertura e franqueza. E isso só poderia existir em empresas que tivessem funcionários engajados na construção de índoles e culturas.

Tudo o que uma organização deveria almejar é o que, parece, muitas empresas brasileiras deixariam de considerar importante. O projeto de terceirização de trabalhadores, que vinha tramitando sem muitos obstáculos no Congresso, é o sinal de que alguns de nossos empresários podem abrir mão de gerir pessoas. Cansaram- se de cuidar de salários, talentos, TPMs, férias, doenças, carreiras e dos sonhos de quem é muito diferente ou muito inconveniente.


A terceirização ampla e irrestrita abre caminho para a transferência de custos e incômodos, quando gente passa a ser estorvo. Mas o que algumas empresas podem querer mesmo é se livrar de suas missões. É ou não é, Jack?

29 de abril de 2015 | N° 18147
PEDRO GONZAGA

TOCA RAUL

Por vezes parecia não ser mais do que um espectro, feito de etílico ectoplasma, velho fantasma dos bares, um ente que se erguia ao final das músicas, no interior e nas capitais. Bastava morrer o som de palha em brasa dos aplausos que a voz se fazia ouvir. Para além do esoterismo, caberá a meus colegas músicos (talvez aos antropólogos) explicar não esta presença – torpe flor da natureza humana –, mas o conteúdo de seu grito: Toca Raul.

Sendo parte da Hard Working, uma banda de música soul, foi-me sempre incompreensível que depois da Andrea Cavalheiro incorporar a Aretha Franklin (já que falávamos em espíritos), levando a plateia à loucura, bastasse um instante de silêncio para que se ouvisse o nefasto pedido. Que ainda se erguia por mais dois ou três números.

Depois, de súbito, calava-se. Do fundo do palco, descansando os dedos no sax, eu cogitava sobre o destino do demandante. Um mata-cobra de alguém? A bênção de um coma alcoólico? Uma retirada estratégica até a próxima batalha? O certo é que o show sempre continuava, sem mais interrupções.

Passo à tese. Em todo agrupamento humano haverá indivíduos que pedirão alguma coisa semelhante ao toca Raul. Nosso tempo, no entanto, elegeu transformar esses indivíduos em seu tema principal. Milhares de pessoas em marcha são menos importantes do que uma que segura ou pinta em seu corpo dizeres esdrúxulos. No show, isso equivaleria a parar a apresentação por causa de um sensaborão (prejudicando a todos os demais), ou considerar que o público é representado por ele.

Pedir a intervenção da segurança resolveria? Não produziria maior distúrbio? Todos sabem (ou costumavam saber) que ele é o eterno chato, alguém que será chato ali, em casa, no trabalho, enquanto se reproduz. Ele já cruzava as savanas da África há milhão de anos em busca de atenção.

Ele é um teste à nossa humanidade. Mas façamos o seguinte esforço. Pensemos que nos cabe chamar a segurança. Tornarmo-nos-íamos os amplificadores de sua chatice? Ou o coro fértil para o mais perigoso entre todos os brados, o da intolerância?


Por mim, podemos rir e tocar a próxima canção. Qualquer coisa, chamemos os Caça-fantasmas.


29 de abril de 2015 | N° 18147 
MARTHA MEDEIROS

Snack culture

Wagner Brenner, do site Update or Die, postou um texto alarmante. O título: “Socorro, não consigo mais ler livros”. Nele, o autor desabafa dizendo que já foi um leitor obstinado, porém, hoje, se o texto não embalar de uma vez, só com muito esforço ele conseguirá continuar a leitura. A extensão tornou-se um problema. Seu hábito agora é de ler apenas cacos, fragmentos, aperitivos, o que se chama snack culture, informação instantânea em drágeas. Ele admite que perdeu a capacidade de se concentrar.

Caso isolado? É só ver os comentários deixados sobre seu post: estão lá uma infinidade de “comigo acontece o mesmo”, “igual a mim”, “também não leio mais” etc. Algumas pessoas inclusive confessaram ter tido dificuldade de ler o próprio desabafo de Wagner, que foi longo. Mal iniciaram o primeiro parágrafo e já pularam para as linhas finais. Ninguém mais tem tempo a desperdiçar. Quando pegam um livro, os leitores já começam a esbravejar com o autor: “Vai, anda, já entendi, para de enrolar”. Veja só, literatura virou sinônimo de enrolação. Qualquer coisa que não diga logo a que veio é porque está embromando. A revolução tecnológica exterminou a paciência.

O tempo em que nos dedicamos ao trabalho, somado ao tempo que passamos nas redes sociais, reduziu o ritmo de nossas leituras. É fato. Aconteceu comigo também. Cheguei a me preocupar, mas tirei 13 dias de férias em fevereiro e, mesmo me mantendo conectada, li quatro livros no período, dois deles com mais de 300 páginas. Ficou claro que ainda estou apta a me envolver. Porém, de lá para cá, minha média vem sofrendo uma queda indesejada. Quatro livros em 13 dias, só saindo de circulação de novo.

Falta de tempo se resolve com administração, portanto, vou tratar de me reorganizar. Mas a incapacidade de se deixar seduzir por algo que não cumpre uma promessa imediata pode afetar negativamente não só a leitura, mas diversas outras áreas do cotidiano. Daqui a pouco, ninguém mais conseguirá prestar atenção na história que um amigo está contando, ninguém mais entrará no jogo das conquistas amorosas, ninguém mais se dedicará a preparar uma refeição, ninguém mais escutará uma palestra, curtirá um recital, dará uma caminhada de olho na paisagem. A menos que tenha um smartphone na mão, para ganhar tempo. Tempo para o que, não me pergunte.

Não sei se é o fim do mundo. O fim do mundo já se anunciou diversas vezes e ainda estamos aqui, então tudo indica que sobreviveremos. Ao menos nossa própria existência está cada vez mais longeva, na contramão das reduções. Se antes morríamos aos 60, aos 70, agora podemos chegar aos 100. O que temos feito com esse acréscimo de vida? Nada de mais. Só de menos.

terça-feira, 28 de abril de 2015


28 de abril de 2015 | N° 18146
CARPINEJAR

O mistério do cofre de meu pai

Meu pai tinha um cofre. Ficava atrás de um quadro do Vasco Prado, em nossa antiga casa na Rua Corte Real, em Porto Alegre (RS).

Ninguém conhecia a senha, a não ser ele.

Ninguém enxergava o que ele colocava lá.

Imaginávamos maços de dólares e sacos de cruzeiros. Imaginávamos, eu e os irmãos, que ele alimentava uma montanha de moedas do Tio Patinhas. Que usava uma pá para tirar o excesso e nos repassar a mesada que gastávamos com balas Xaxá no armazém da esquina.

Quando ele mexia no esconderijo, não podíamos permanecer perto. Chamava a nossa mãe para nos levar embora. Era uma questão de segurança.

Um dia, o Rodrigo apareceu com estetoscópio de médico para ouvir o que tinha dentro. Outro dia, o Miguel bateu com um martelinho para verificar a profundidade do fosso. E ainda teve um dia em que a Carla arriscou uma combinação a partir da data de aniversário do pai, não deu certo e quase fomos pegos.

O segredo durou minha infância inteira. Até nossa residência ser assaltada enquanto veraneávamos em Pinhal (RS).

Assaltantes entraram pela janela do banheiro. Entortaram as grades. Levaram a televisão preto e branco e grande parte dos eletrodomésticos.

Ao voltar da praia, meu pai – percebendo a casa depenada – correu em direção ao escritório. Aproveitamos o desespero para ir atrás. Não seríamos impedidos naquela hora trágica.

Largamos as malas no meio do corredor e seguimos a sombra paterna.

O cofre está escancarado. A porta de metal finalmente aberta, estouraram o disco de acesso.

O pai pôs, com extremo cuidado, sua mão no interior do quadrado na parede. Lembro o suspense, a minha respiração parou.

E trouxe do fundo do buraco seis espirais, seis cadernos amarelados.

– Ufa, não levaram!

Carla, a irmã mais velha, perguntou o que era aquilo, pois aquilo não era dinheiro.

– Meus livros de poesia! – o pai respondeu.

Ele usou o cofre para guardar o que possuía de mais precioso: sua obra inédita.

Antevejo a decepção dos ladrões ao puxar um amontoado de versos. Tanto trabalho para explodir o cofre e só acabariam mais cultos e ricos de espírito.

Mergulhamos em estado de choque. Tampouco cogitávamos a hipótese de ser algo diferente do que uma poupança.

O episódio transtornou o meu modo simplista e direto de entender as pessoas. Cada um tem sua fortuna misteriosa. Algo que é somente valioso pelo sentimento e que não tem como ser valorizado por quem é de fora: um brinco dado pelo marido, uma compilação de receitas herdada da avó, um álbum de figurinhas, uma caneta tinteiro, uma camisola.

Não menosprezo os objetos da casa dos outros. Não jogo nada fora que não seja meu. Toda recordação pode ser de amor, e o amor é um cofre onde nos protegemos do esquecimento.



28 de abril de 2015 | N° 18146
PORTO ALEGRE

Fórum debate boas práticas na educação

O tema escolhido como prioritário pelo governo federal, a educação, será foco também de um evento preparado pela Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho (FMSS) para agregar conhecimento, identificar boas práticas de ensino nas escolas e conhecer iniciativas para o setor. O 2º Fórum Educação que Dá Certo! reúne hoje, no Teatro do Sesi, lideranças empresariais, professores e representantes políticos para debater questões relacionadas ao mote “Qualidade na educação, uma prioridade da nação”.

Um dos objetivos do encontro é unir entidades que entendem seus compromissos e suas responsabilidades na área da educação para pensar em um modelo de gestão escolar eficiente, com os professores como protagonistas e garantindo o aprendizado dos alunos – o que inclui discutir a tecnologia.

– O que acontece dentro da sala de aula deve se conectar com a vida do estudante fora dela. A tecnologia mudou a vida de todo mundo. As escolas devem estar atentas a essas mudanças para preparar as próximas gerações, que serão as responsáveis por um futuro melhor – diz a gerente-executiva da FMSS, Lucia Ritzel.

ENTRE OS PALESTRANTES, NOMES DE PESO DA ÁREA

Além de Lucia, o presidente do Conselho de Administração do Grupo RBS, Nelson Sirotsky, e a colunista política do Grupo RBS Rosane de Oliveira vão mediar os painéis. Entre os palestrantes, estão nomes como Claudio Sassaki, cofundador da plataforma de ensino Geekie, Vilma Guimarães, gerente- geral de Educação e Implementação da Fundação Roberto Marinho, e Evaine Desidério, professora vencedora do 2º Prêmio RBS de Educação na categoria escola pública.

As inscrições, feitas com doações de livros que serão entregues à Escola Municipal de Ensino Fundamental América e ao projeto Caravana da Leitura, já estão esgotadas.

SERVIÇO DO EVENTO
-Local: Teatro do Sesi, Avenida Assis Brasil, 8.787, Porto Alegre
-Horário: das 8h às 18h

-Inscrições esgotadas

28 de abril de 2015 | N° 18146
LUIZ PAULO VASCONCELLOS

DEZ ANOS SEM ARTHUR MILLER

Se for verdade que o maior mérito de um dramaturgo é apreender o contexto social do seu tempo e expressá- lo, então Arthur Miller foi um grande escritor. Se for verdade que uma peça de teatro não é boa apenas pelo tema que aborda, pelas ideias que defende, mas também pela beleza de sua narrativa, então mais uma vez Arthur Miller foi um grande escritor. Se for verdade que o que comove e arrebata num texto dramático são as personagens, então, mais uma vez, Arthur Miller foi (e é) um grande escritor.

Responsável, junto com Eugene O’Neill e Tennessee Williams, por arrancar o ranço provinciano da literatura norte-americana, Miller deu magnitude e consistência a um universo que sempre mostrou-se avesso aos conceitos de heroísmo e tragicidade, ou seja, a classe média americana.

Em Eram Todos Meus Filhos, escrita em 1947, o fornecimento de peças defeituosas de um avião provoca a morte de um grande número de soldados durante a II Guerra Mundial. O que levou o industrial Joe Keller a agir dessa maneira foi a possibilidade de perder contratos com o governo, o que levaria sua indústria à falência. Atirando a culpa sobre um sócio, Keller desfruta os benefícios da desonestidade. Quando a culpa é descoberta, um de seus filhos, aviador, suicida-se. Para não ver o outro filho entregá-lo à polícia, ele também se mata.

Depois da Queda foi fruto de um drama pessoal do autor, o suicídio da atriz Marilyn Monroe, de quem Miller havia se divorciado pouco tempo antes. Na peça, o protagonista, o advogado Quentin, entra em crise após o suicídio de sua ex-mulher. Abandona o trabalho e viaja para a Alemanha, onde visita um campo de concentração com suas câmaras de tortura. Dirigindo-se sempre a um interlocutor imaginário, ele declara: “Agora eu sei que o desastre da minha vida realmente começou quando um belo dia olhei para cima... e estava vazio. Nenhum juiz à vista”.


Arthur Miller, nascido há cem anos, em 1915, faleceu em 2005, nos deixando um legado de grandes peças teatrais.

28 de abril de 2015 | N° 18146
DAVID COIMBRA

Os ricos malvados

Bresser-Pereira disse em entrevista a Zero Hora que os ricos nunca gostaram da democracia e a temem. Preocupante. Porque, afinal, quem são os ricos?

Respondo: os ricos são pobres, só que com dinheiro. Pegue um pobre, abra uma conta bancária para ele e encha-a de reais. Pronto, ele virou rico.

Por exemplo, o Lulinha, filho do Lula, até o pai chegar à Presidência, era monitor de zoológico e ganhava R$ 600 por mês. Agora ele é empresário bem-sucedido e mora num apartamento que vale R$ 6 milhões. Ou seja: Lulinha era pobre e se tornou rico.

A premissa contrária também é verdadeira, e há vários casos que o demonstram. O mais recente e mais notório é o de Eike Batista, que chegou a ser o oitavo nababo do mundo e hoje se repoltreia no pântano infecto da classe média.

Então, está claro que ninguém nasce com o gene da riqueza, que seria uma espécie de inimigo do gene da democracia. Em tese, qualquer um pode ser rico, até o Bresser-Pereira. E aí pulsa e freme a questão: por que uma pessoa, uma vez enricada, começa a odiar e temer a democracia?

Sei qual é o raciocínio do Bresser-Pereira. É o raciocínio do brasileiro em geral: a democracia dá direitos iguais a todos. Logo, o regime democrático diminuiria os privilégios dos ricos. Mas os ricos, obviamente, não querem perder esses privilégios, sobretudo porque sua riqueza é baseada neles. Em resumo, os ricos são ricos porque exploram os pobres. Os ricos são opressores; os pobres, vítimas da opressão. Assim, ricos e pobres são inimigos, são classes em luta eterna, irreconciliáveis por natureza.

Por isso, ganhar dinheiro, no Brasil, é uma vergonha. Se alguém tem dinheiro, provavelmente o roubou. Fazer sucesso é suspeito. Se alguém faz sucesso é porque se vendeu aos ricos.

Já ser pobre pode ser ruim, mas é lindo. Pena que os pobres brasileiros, não lhes bastando a pobreza material, sejam também pobres de espírito. Eles não gostam da Rede Globo porque a qualidade dos programas é ótima, nem do McDonald’s porque o Big Mac é um bom sanduíche, nem da Coca-Cola porque o refrigerante é saboroso, nem do Roberto Carlos porque ele canta bem. Não. Todos esses casos vitoriosos na verdade enganam os pobres. Eles usam de fórmulas malignas que iludem facilmente os coitadinhos, que passam a apreciar coisas horríveis e detestar coisas maravilhosas, como as músicas da Mercedes Sosa, os filmes do Godard e os livros da Virginia Woolf. Que fórmulas são essas? Aí está algo que só os ricos sabem. Há apenas uma maneira de você descobrir: pergunte ao Lulinha.

NOBEL DA PAZ


Não assisti ao Gre-Nal. Pelo menos não a todo. Estava em Nova York, vendo os ricos gastando em dólar. Mas tenho algo a dizer a respeito: essa torcida mista é uma das iniciativas mais inteligentes, sensatas e nobres da história do futebol mundial. Não é exagero. Os dirigentes que a tornaram possível merecem loas e aplausos. Os nomes! Quero os nomes desses gremistas e colorados da paz.

segunda-feira, 27 de abril de 2015


27 de abril de 2015 | N° 18145
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

A MORTE DE UM PUBLICITÁRIO

Mad Men é claramente psicografada por um blend de Tennessee Williams com Arthur Miller, teatro americano da mais alta qualidade, herdeira de Um Bonde Chamado Desejo e Morte do Caixeiro Viajante, com Don Draper no papel de todos os personagens trágicos que já passaram pelos palcos brodueianos.

Na última metade de sua última temporada, Mad Men se transforma ainda mais em uma pintura de Edward Hopper, e se alguém ainda não percebeu, olhe para Nighthawks. Draper é a condensação da solidão americana, a solidão cercada da possibilidade de riqueza por todos os lados, e nem assim menos abandonada.

Mad Men é tão bom que os seus personagens mais desprezíveis são maravilhosamente desprezíveis. Harry é o símbolo desse mundo de seres que se deslocam por uma escada rolante sobre um mundo que não compreendem, e apenas vendem.

Na Broadway, a última montagem da Morte do Caixeiro foi com o brilhante Philip Seymour Hoffman, que, sabemos, morreu. A entrada dele em cena ao som de Boy, Oh Boy é antológica. Em Mad Men, o homem vencido pelo peso de carregar o sonho americano é substituído pelo homem que não compreende por que alguém compraria o sonho que ele sabe muito bem do que é feito, por ser ele quem o faz. Don Draper não tem ilusões, porque ele as constrói, embala, vende, em troca de milhões de dólares e uma solidão inafiançável.

Mad Men já deixou claro que não existe qualquer chance de Don virar um sujeito bacana e bonzinho, para a felicidade geral da nação. Em um mundo definido pela frieza, ele é apenas um profeta, mesmo que nada interessado em propagar sua mensagem. Ele vende produtos, mais nada.

Arte é arte. Fotografia de anúncios é apenas comércio, nos diz Stan, que adoraria ser artista e agora sabe que o que é, graças a uma fotógrafa talentosa e bissexual, mais talentosa do que bi, aparentemente. Mad Men é arte sobre o que não é arte, e é vida sobre o que não tem vida alguma. Por isso, quando Mad Men acabar, daqui a pouco, um palco vai ficar vazio e triste, sem nada que nos compense a perda. Mad Men sai de cena espalhando tristeza, exatamente como faz o grande teatro. Aqui em casa, rola uma lágrima antecipada, e imagino que do lado daí dessa página, também.

Snif a todos, e até a próxima.



27 de abril de 2015 | N° 18145
CÍNTIA MOSCOVICH

CARPINEJAR DE VOLTA À CASA

Boas notícias para a cena literária: depois de oito anos sem publicar poesia, Fabrício Carpinejar volta ao gênero com Todas as Mulheres, lançamento prometido para o segundo semestre deste ano pela Bertrand Brasil.

Interrompendo um intervalo que se iniciou em 2007, com Meu filho, Minha Filha, período no qual se dedicou à crônica e a deslanchar uma carreira que envolve jornais, revistas, duas emissoras de televisão, rádio e Internet, o autor volta aos versos com vigor e sobriedade. Carpinejar apresenta um livro que se desenvolve num poema único, apenas com arejadas pausas entre estrofes, espaços em branco que propiciam tempo para a reflexão sobre o que se está lendo.

Como vem fazendo desde sua estreia com As Solas do Sol, de 1998, o novo livro segue um enredo proposto por um sujeito lírico-narrador. No caso de Todas as Mulheres, o protagonista é um poeta morto, espécie de Brás Cubas dos versos, que assiste a seu próprio velório e tenta localizar, entre as ex-mulheres que pranteiam sobre o caixão, aquela que, por amor, é sua verdadeira viúva. O resultado dessa trama é um nunca menos que impressionante inventário sentimental, um rol de paixões do qual o poeta extrai crus e dolorosos achados acerca dos relacionamentos amorosos e familiares.

Escrevendo com destemor lírico – há quem diga que Fabricio é na literatura o que é na vida –, confessando paixões incendiárias e deixando escapar de cada verso um erotismo tão delicado, o poeta consegue vencer a maior batalha de todas, que é a de arrancar transcendência daquilo que é banal e singelo. Essa simplicidade, que de simples não tem nada e que é feita do essencial arrancado ao excesso, talvez seja a grande marca do retorno de Carpinejar à casa da poesia.


Contrastando com o jorro das paixões e das lembranças, ali está o termo adequado, a metáfora no lugar preciso, a exatidão do vocabulário. Tudo no texto parece construído com uma naturalidade que chega a desconcertar, como se amor e desilusão pudessem ser contadas numas poucas palavras. Carpinejar pode ter demorado muito tempo para retornar a seu gênero de origem. Mas afianço: que retorno.

27 de abril de 2015 | N° 18145
DAVID COIMBRA

Medo de panela de pressão

Tenho medo de panela de pressão. Já ouvi coisas horríveis a respeito de acidentes que ocorreram devido ao uso enviesado de panelas de pressão. Se você não cuidar, uma panela de pressão pode explodir violentamente e causar danos e mutilações ou coisa pior. Acho que foi a minha mãe que, uma vez, me contou de uma senhora, zelosa dona de casa, que morreu com uma tampada de panela de pressão entre os olhos. Morte inglória. E desagradável, por que a pessoa, além de morrer, não é levada a sério. Você chega ao enterro e pergunta:

– Como se deu o passamento da falecida?

Alguém conta, entre lágrimas:

– Ela estava fazendo feijão com linguicinha e a panela voou bem na cara dela a uma velocidade de 80 quilômetros por hora...

Como você vai ficar compadecido? Não, não, é preciso haver solenidade na morte. O senador Pinheiro Machado, ilustre antepassado dos meus amigos Ivan e Zé Antônio, dizia que suas roupas de baixo eram sempre feitas da mais pura seda, para o caso de ser surpreendido por morte violenta. E, de fato, Pinheiro Machado, “o condestável da República”, foi apunhalado pelas costas no saguão do Hotel dos Estrangeiros, no Rio. Antes de cair, grunhiu:

– Ah, canalha! Apunhalaram-me!

Morreu usando ênclise perfeita e cuecas de seda. Elegância! Isso é elegância, meus amigos!

Elegância é fundamental. Veja o Obama. O jeito que ele caminha. Aquele gingado. Demonstra possuir domínio do próprio corpo. Coisa de atleta – Obama foi jogador de basquete na universidade. E a impostação do homem! A pontuação das frases. Obama nasceu para ser presidente dos Estados Unidos.

Será que seria presidente do Brasil?

Não sei, nossos presidentes sempre tiveram uma aragem popularesca. Collor era o que mais dava importância para a aparência, mas Collor era um brega, ele com aquelas suas camisetas com mensagens. Jânio, conta-se, fazia questão de deixar a caspa nos ombros, para parecer “do povo”. Fernando Henrique dizia ter “um pé na cozinha”. E Lula foi o maior mestre na arte de se mostrar “gente como a gente”, a ponto de falar errado mais por gosto eleitoral do que por incúria verbal.

Mesmo assim, todos cuidavam de certos detalhes que lhes davam distinção, e o maior símbolo disso é a barba embranquecida de Lula, que, tornada barba presidencial, era aparada com critério de ourives. Não havia um fio rebelde, um fio contestador, um fio guevarista naquela barba de número 1 da República.

É por isso que vejo na mudança de imagem de Dilma alvíssaras para o governo federal. Na cerimônia de posse, ela caminhava pesado, roçando pernas, mais arfando do que respirando. Parecia desleixada, e o desleixo é primo-irmão da negligência, característica deplorável em quem tem como missão olhar por todo um país. Mas, nas semanas seguintes, Dilma emagreceu 14 quilos, graças ao tal método Ravenna. Não usa mais aquele conjuntinho vermelho. Está mais disposta. Está... bem.


Tenho convicção de que esse foi um ingrediente importante para que sua popularidade parasse de cair. Dilma fez várias aparições, de uns tempos para cá, e as pessoas viram-na melhor do que estava antes. Intimamente, talvez tenham sentido: por que o governo não pode melhorar também? Pode, claro que pode. Até porque, se piorar... cuidado com o panelaço de pressão!

27 de abril de 2015 | N° 18145
MOISÉS MENDES

Olímpico torturado

Há exatamente um ano, vi funcionários de uma empreiteira enfiando brocas nas colunas de concreto do Olímpico. Serão enfiadas nesses buracos as bananas de dinamite que irão implodir o estádio. Mas o Olímpico continua de pé.

Há um ano, Luís Henrique Benfica e eu levamos Alcindo ao estádio para as despedidas. O maior centroavante da história do Olímpico, o maior goleador, o mais completo de todos os ídolos tricolores relembrou gols históricos e se despediu.

Voltei sozinho uma semana depois, quando vi os operários esburacando as paredes, olhei um quero-quero solitário, sentei nas sociais e fiquei pensando: daqui a alguns dias, implodem o Olímpico. Mas adiam e adiam a implosão do Olímpico. Nem um colorado radical seria capaz de articular tamanha crueldade.

Passo todos os dias, na ida e na volta para a Zero, pelo que sobrou do Olímpico. Na ida, vejo todo o lado leste-sul, pela Cascatinha. Ali, durante um tempo, uma máquina com mandíbulas de dinossauro mordia as paredes e cuspia pedaços de concreto no chão.

A máquina foi levada embora. Ficaram as arquibancadas carcomidas. O Olímpico é um Coliseu com morte anunciada. A feiura do que sobrou das arquibancadas parece expor partes íntimas do estádio, como se se esforçassem para degradá-lo moralmente.

Sou testemunha do Olímpico no purgatório. À noite, quando retorno para casa, vejo os tapumes que escondem parte do estádio, no lado norte, da Carlos Barbosa. É a tortura de ver o Olímpico sendo preparado para a implosão que não acontece.

No dia em que levamos Alcindo, lembrei que um de meus Gre-Nais inesquecíveis foi aquele do início dos anos 70 em que distribuíram sacos de papel com tinta turmalina e papel picado para a torcida. Deveríamos jogar a tinta azul em pó para o alto quando o time entrasse em campo.

Era uma imitação do pó de arroz do Fluminense. Mas choveu. Os sacos estouravam antes, quando eram distribuídos para a torcida, e eu saí todo azul do estádio. Não lembro quanto foi aquele jogo e isso não importa.

Na era dos estádios assépticos, faz bem lembrar do tempo em que uma arquibancada produzia essas magias – por mais malucas que fossem as ideias que tornavam um estádio monumental.


Quanto tempo levará para que um dia a Arena tenha uma alma, como a que assegura a eternidade ao Olímpico?

27 de abril de 2015 | N° 18145
VERÍSSIMO

Buracos morenos

A mais nova especulação da física é que existem mais buracos negros no Universo do que se imaginava. Eles não estariam apenas na imensidão sideral, como gigantescos aspiradores engolindo galáxias inteiras, mas também à nossa volta, como pequenos ductos para o universo paralelo. Seriam tão comuns e fariam parte do nosso cotidiano de tal maneira, que deveríamos parar de chamá-los de buracos “negros”, com sua conotação de obscuridade e terror, e adotar um nome mais íntimo, como buracos morenos (mas não, claro, buracos afrodescendentes).

Qualquer um de nós está sujeito a ser tragado por um desses buracos e se ver, de repente, no outro universo. Onde poderia muito bem encontrar aquela caneta favorita que tinha sumido, o último disco do Chico que desconfiava que alguém tinha roubado, livros e outros objetos inexplicavelmente desaparecidos e até a tia Idalina, que todos pensavam que tinha fugido com um boliviano e fora apenas sugada por um ducto.

Uma possível vítima de um desses hipotéticos buracos morenos seria o ministro do Supremo Gilmar Mendes, que pediu vista do projeto de alteração das leis eleitorais para impedir doações de empresas a partidos políticos que estava sendo votado no Tribunal, guardou o projeto numa gaveta da sua casa para estudar depois, fechou a gaveta com chave – e a chave desapareceu. O ministro estaria procurando a chave por todos os lados, preocupado em não atrasar a votação, e não a encontrando. Só haveria uma explicação possível para o desaparecimento da chave: buraco moreno.

Outro caso em que um buraco moreno seria a única explicação aceitável é o da ação penal contra o senador Eduardo Azeredo, do PSDB, suposto beneficiário maior do que ficou conhecido como o “mensalão” mineiro, ou “mensalão” tucano, origem e modelo do “mensalão” que mais tarde beneficiaria o PT. Exaustos depois do julgamento do PT, os ministros do Supremo decidiram mandar o processo contra Eduardo Azeredo para ser julgado em Minas. No caminho de Minas, o processo teria se desfeito no ar. Pelo menos nunca mais se ouviu falar nele. Buraco moreno.


Aliás, um mistério sobre o qual a física também deveria especular é o da predileção dos buracos morenos pelo PSDB. Por exemplo: a compra de votos para possibilitar a reeleição do Fernando Henrique caiu no esquecimento, ou caiu num buraco moreno? O PT não quer outra coisa a não se que um buraco moreno venha aspirar todas as suas agruras, como faz com o PSDB. É pura inveja.

sábado, 25 de abril de 2015


26 de abril de 2015 | N° 18144
MARTHA MEDEIROS

Os Largados

Sem computador, sem televisão e sem bateria

no celular, me restou o ato heroico de ler um livro

Antigamente eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, de um fôlego só. Por sorte, Os Largados, do italiano Michele Serra.

Divertir e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos, come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.

Enquanto o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a acompanhá-lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e Velhos. E é aí que Os Largados diz a que veio.

É só olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta, mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos – ou discutíamos, brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum.

Não é mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação – a suspeita? o terror? – de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos reconhecer, você e eu, no mesmo prazer”. E continua: “Partiu-se uma corrente – da qual eu sou o último elo”.

A questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica zonza e por vezes até paralítica diante das variadas opções disponíveis de sexo, amor, carreira?

Estão 100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não, o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado, mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se apresentar.


Leia, porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro, continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer circunstância. O cérebro não cai.

26 de abril de 2015 | N° 18144
CARPINEJAR

Noiva cadáver

Fingir felicidade é mais amargo do que a tristeza. Um veneno para almas sensíveis durante uma separação. Fui numa festa na Woods, em Porto Alegre. Sertaneja e à fantasia, ou seja, com todos os ingredientes para me sentir deslocado. Não tinha como demonstrar euforia.

Poderia rir com a boca, não com os olhos, que é o meu riso mais verdadeiro. Poderia rir como quem ri para tirar uma fotografia (obedecendo ao x), não como quem ri observando sua amada (admirando o y).

Entre gladiadoras, policiais, branca de neve e indígenas, o que mais vi foi noiva cadáver. Não se trata de uma fantasia, mas um estado de espírito, um matrimônio doentio com o lado escuro do amor.

Representavam mulheres recém separadas que forçavam a barra de sua alegria, estavam mais interessadas em se vingar do ex com fotos no instagram ou marcações no Facebook, estavam desesperadas procurando uma porta de incêndio da sua fossa com beijos fáceis ou sexo louco.

Falei com uma guria na escada, e ela terminou a relação há duas semanas. Falei com outra na frente do bar e ela encerrou um romance há um mês. Falei com mais uma fantasiada na fila do banheiro e ela lamentava o fim de seu namoro na semana passada. Entrei num camarote com cara de purgatório, penadas peladas. Aquela nudez proposital não me convencia. Os cílios postiços escondiam o caminho das lágrimas.

Elas não se movimentavam com a liberdade das palavras. Suas pulseiras brilhantes da casa noturna lembravam algemas de casos mal resolvidos. Ostentavam um contentamento fictício, que é diferente de ser feliz.

Não achariam ali sua solução, seu remédio. Tampouco desejavam trair o amor despedaçado, confinadas nas lembranças dos seus antigos pares. Por mais que rebolassem e se agachassem nas grades, o que se notava com nitidez é que berravam as músicas de dor de cotovelo. Conheciam vírgula por vírgula, como quem pede socorro. Eram mulheres casadas por dentro fingindo solteirice por fora.

No luto, o melhor é ficar em casa. O melhor é destruir um pote de sorvete e assistir a um filme romântico de pijama. O melhor é se tocar em segredo debaixo das cobertas, depois do choro. O melhor é não conferir o espelho e repetir os lamentos para os melhores amigos. O melhor é desaparecer para se acostumar com o fim ou reencontrar o início.

Jamais se violentar socialmente buscando ser agradável. Jamais chamar vítimas para ocupar o próprio lugar. Jamais tripudiar o que aconteceu de errado com novos pretendentes.

Jamais trazer para perto quem não tem nada a ver com sua angústia.

Reparar, enquanto é tempo, que você ainda está contaminada, ainda está reagindo à separação, ainda quer provocar atenção do ex, ainda vem conversando com os problemas do passado.

Não se envolva com rapidez para aumentar a culpa: quantos corações você precisa destruir para refazer o seu?


O ímpeto de sair de qualquer jeito do sofrimento lhe fará sofrer muito mais.