30
de março de 2014 | N° 17748
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
Deu prá ti anos
70
Eu
vi a prisão do Marcos Klassmann. Ele era barbudo e cabeludo como um urso, e
seus captores carregavam-no por braços e pernas, e ele se debatia com fúria de
fera.
Cena
forte.
Agora
me ocorre: será que foi assim mesmo? Será que foi exatamente como lembro? Faz
tanto tempo, eu era um guri e a memória nos engana. A memória é um prédio
erguido depois do fato ocorrido, e sua matéria-prima são sentimentos e
ressentimentos, crenças e ilusões. Já vi mulheres que amei me transformando em
um edifício torto na memória delas. Não sou tão ruim assim, queria gritar, e
parar a construção. Não adiantava, os tijolos de desprezo já estavam sendo
cimentados.
E
eu, eu fiz de algumas mulheres rainhas, semideusas do amor e, mais tarde,
quando o tempo me afastou delas e delas só restou a imagem, as reencontrei e
percebi, com desalento, que aquele monumento ao ser humano só existia dentro de
mim, que ali, na minha frente, havia só uma mulher... igual a todas as outras.
Triste. Um homem precisa acreditar que a vida pode ser especial.
Então,
não sei se foi bem da forma como contei que se deu a detenção do Marcos
Klassmann pelos esbirros da repressão. O que tenho certeza foi do que pensamos
sobre os alegados motivos para que o arrastassem de seu apartamento no IAPI:
sua agressiva campanha a vereador de Porto Alegre. Imagine que o slogan do
Marcos Klassmann era o seguinte:
“Vote
contra o governo”.
Quer
dizer: Marcos Klassmann estava sugerindo que as pessoas deviam ser contra o
governo. Uma afronta. Todos sabiam, nos anos 70, que ninguém podia ser contra o
governo, que ser contra o governo era ser contra o Estado, contra o país. Vote
contra o governo, no raciocínio de quem estava no governo, equivalia a dizer:
vote contra o Brasil. Traição, traição. Ame-o ou deixe-o.
Vote
contra o governo. Tão revolucionário na época, tão pueril hoje. A vida se
sofisticou, desde então.
Em
79, uma pichação se espalhou por muros e paredes de Porto Alegre:
“Deu
pra ti, anos 70”.
No
ano seguinte, o Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti lançaram um filme com esse
título, mas tenho quase certeza de que as pichações não eram marketing, não
antecipavam o filme. Aquilo era de fato a expressão de quem tinha sofrido nos
anos 70, como o Marcos Klassmann.
Nós,
não. Nós não tínhamos sofrido. Éramos guris, e só o que queríamos era correr
atrás da bola durante o dia e das meninas durante a noite. Quando o Marcos
Klassmann foi arrancado de casa e levado para algum calabouço sombrio do
regime, nenhum de nós ficou escandalizado. Assustados, sim; penalizados,
certamente; escandalizados, não. Aquilo era normal. Para nós, funcionava assim
mesmo. Nós só conhecíamos a ditadura.
Para
nós, não havia nada de estranho, por exemplo, na figura do “pistolão”. O
pistolão era um protetor, um homem que gozava de algum poder ou de alguma
influência e que, graças a isso, resolvia os eventuais problemas que você
poderia enfrentar no trato com o Estado, que, afinal, era quase absoluto. O
Estado mandava em tudo e em tudo se infiltrava. O Estado, durante a ditadura
militar, era muitíssimo parecido com um Estado comunista, o regime que os
militares queriam desesperadamente evitar. O pistolão era o agente oficioso do
Estado. Oficioso, sim; jamais clandestino. As pessoas se orgulhavam de contar
com a bênção de um pistolão forte. Eram apontadas com inveja na rua:
– O
pistolão daquele lá é um general.
Essa
era a vida. Ninguém nunca tinha nos dito que poderia ser de outra maneira. Mas
os anos 70 passaram e com eles passou o nosso tempo de guris, e começamos a ver
que o mundo não precisava ser como estava posto, que havia um tipo de vida
diferente em lugares diferentes. Mesmo que as coisas tivessem sido sempre
daquela forma, não queria dizer que deveriam continuar a ser daquela forma.
Faz
50 anos que aquele regime foi implantado e 25 que deixou de existir. Hoje, uma
geração inteira, como aquela nossa, não sabe o que é viver sob uma ditadura.
Não sabe que, numa ditadura, um homem pode ser tirado à força de sua casa e
atirado numa prisão só porque disse ser contra o governo. E os que sabem que
isso aconteceu, mas que ainda assim se dizem saudosos daquele regime, esses são
vítimas dos tais truques da memória. O velho regime, para eles, é como a minha
antiga rainha, a semideusa que um dia amei: só existe na memória. Porque, na
realidade, uma ditadura é... igual a todas as outras.
Um
mês de tantas flores
Elvis
morreu nos anos 70.
Elvis,
the pelvis.
Mas
Elvis não era mais dos anos 70, nos anos 70 ele estava gordo, suado e usando
aquelas roupas estranhas, brilhantes, com golas imensas. Os anos 70 começaram
com Beatles, seguiram sendo Rolling Stones, que os Stones são intermináveis,
estremeceram com os punks dos Sex Pistols, mas foram mesmo, mesmo, da
Discoteque. Pelo menos para quem era guri na Zona Norte profunda de Porto
Alegre.
John
Travolta! As minas queriam que você dançasse como o John Travolta. Mas eu, que
não sou de danças, o que poderia fazer diante daqueles concorrentes com cintura
de borracha?
Poesia.
Não minha, dos outros.
Foi
aí que aprendi uns poeminhas para impressionar na noite. Chegava um momento em
que o som baixava e eu atacava:
“Quando
nasci, num mês de tantas flores,
Todas
murcharam, tristes, langorosas,
Tristes
fanaram redolentes rosas,
Morreram
todas, todas sem olores.
Mais
tarde da existência nos verdores
Da
infância nunca tive as venturosas
Alegrias
que passam bonançosas,
Oh,
minha infância nunca teve flores!”
Augusto
dos Anjos. Se você é duro para dançar, apele para o Augusto dos Anjos.