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terça-feira, 17 de janeiro de 2012
17 de janeiro de 2012 | N° 16950
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Desentortar pregos
Por um motivo banal de manutenção da casa, precisei desentortar um prego esses dias. E lembrei que tinha meus oito anos quando meu pai me ensinou a arte, a especial arte de desentortar pregos: precisa apoiar o indicador na ponta do prego, deitado em alguma superfície dura, e bater com o martelo, delicadamente, na barriga da parte torta; e precisa rolar o prego para ir desfazendo outras barrigas eventuais, numa combinação entre o dedo que está ali segurando a ponta e a mão que maneja o martelo.
Não que o pai tenha falado em “especial arte”; era outro tempo, outra fase da história humana, anterior ao superconsumo de nossos dias. O lance era mesmo desentortar os pregos para tê-los, para uso posterior em alguma arrumação, algum conserto, um banco de cozinha desconjuntado, uma prateleira nova, uma gaveta cujo fundo tivesse cedido, até mesmo algum brinquedo rompido.
Também era um tempo anterior à consciência pedagógica que agora as classes confortáveis têm e proporcionam aos pequenos, sempre enfatizando nas ações o lado sublime, não o lado pragmático. Ia lá o pai pensar em “arte”, quando se tratava de coisa da vida diária?
Essa civilização, que guardava os pregos velhos, as latas (lembra aquelas de biscoito?), as caixas, para uso futuro, em caso de necessidade, que sempre vinha, essa civilização morreu quando o leite passou a vir em sacos plásticos. Aquilo, o que foi aquilo? Não era apenas o fim dos litros de vidro, que o leiteiro distribuía de casa em casa ou a gente comprava na padaria; era também o começo do desperdício, hoje perfeitamente naturalizado.
Mas no começo não: assim que o leite nosso de cada dia passou a vir embalado em plástico (branco, resistente, com as marcas da fábrica), a dona de casa tinha um item a mais na rotina – guardar aquele saco: esvaziava-se o conteúdo (inventaram uns porta-sacos para servir o leite) e depois o saco do leite era lavado e colado na parede da pia, para secar; ele serviria para algo.
Para quê? No universo da classe média para baixo, algumas senhoras ainda tentaram dar sentido àquela infinidade de sacos (tramas para cortinas?, toalhas de mesa?, enfeites?).
Mas logo elas foram derrotadas: aquele plástico todo, até pouco tempo antes tão raro e valioso, era agora uma banalidade, parecida com o ar, a passagem do tempo, o boa-noite do Cid Moreira, coisas grátis e sem transcendência. Nada era grátis, mas era difícil saber, naquele tempo.
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