terça-feira, 31 de janeiro de 2012



31 de janeiro de 2012 | N° 16964
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Bem-vinda

Foi quarta-passada, dia do meu aniversário, de manhã, na Osvaldo Aranha, eu indo para a Reitoria da UFRGS, de carro. Parado numa sinaleira, olho à toa para a calçada: grupo anódino de gente olhando vitrine. Fixo a atenção: são quatro pessoas, homem maduro e três mulheres.

Pai, mãe e filhas? Leem anúncios de apartamentos para alugar. Tem fotos ali. Olho de novo para cada um: o homem, o pai, é quem de fato lê tudo; a mulher, a mãe, olha para ele, interrogativa; uma das gurias, filha mais velha, acompanha o olhar do pai; a outra, mais jovem, abandona aquele assunto e se volta para a avenida. O olhar dessa guria é que é.

Na minha fantasia, tratava-se ali de escolher um apartamento para alugar, porque a filha mais velha passou no vestibular, talvez na UFRGS, um curso ali perto. A família veio do Interior, ainda feliz com o resultado do esforço da filha; está passando uns dias na casa de uma tia, uma prima solícita, que ofereceu a casa para eles virem enquanto ela mesma está na praia. A família precisa de tempo para toda a mudança, que mal começou.

Agora a filha maior vai morar na Capital, cidade grande, misteriosa, que eles conhecem assim de passagem, o pai umas vezes veio ver o Inter, a mãe quase morou num pensionato, as gurias têm pouca intimidade aqui. E a filha universitária vai partir para outros compromissos, viver outros ritmos, ver o que nunca viu, talvez ninguém da família próxima jamais tenha visto. Ela vem conquistar o mundo, que reside aqui, em Porto Alegre.

E a irmã mais nova? O dia era do meu aniversário, logo eu estava com o coração mais disponível para os afetos, posso ter exagerado. Mas, putz, olha ela ali: a cara meio assustada, olhando para... Para o quê? Os carros, sim, as palmeiras, o ar, os prédios, a Redenção, as várias pistas, o tumulto que nem nos afeta mais e que a ela move por dentro e pulsa na garganta.

Ela olha, pensei eu, para a cidade, essa entidade invisível e onipresente. Ela olha e, ao contrário de nossas retinas cansadas, não enxerga apenas os elementos que interessam: ela se chapa com o conjunto, sem encontrar o fio daquela meada, excitada, temerosa, desafiada, apavorada, tudo bulindo os sentidos e os sentimentos.

Eu pensei: “Bem-vinda”. A cidade tem de bom isso, guria: aqui tudo é de todos, ninguém é de ninguém. Entrega a tua história para a cidade, para ajudar a cidade a ser o que ela é; integra a tua vida nesse bololô, vai dar certo.

Não parei o carro, claro. O sinal esverdeou e eu arranquei, o coração apertado. Guria, é o seguinte: a cidade é assim, ninguém vai te dizer direito o que tu queres e precisas saber, nem eu, que vi o teu olhar. Descobre tu.

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