terça-feira, 24 de janeiro de 2012



24 de janeiro de 2012 | N° 16957
DAVID COIMBRA


Em busca do tempo perdido

Proust era um filhinho-da-mamãe. Apreciava aquela brincadeira colegial de meninas, o “questionário”, um caderno com perguntas íntimas que é passado entre os amigos e depois devolvido ao proprietário. Veja algumas questões que ele respondeu aos 14 anos de idade:

“Cúmulo da miséria: estar separado de mamãe.

Ideal de felicidade terrena: viver perto de todos que amo, com os encantos da natureza, uma porção de livros e partituras, e não longe de um teatro francês.

Faltas pelas quais tem mais indulgência: a vida particular dos gênios.

Ocupação predileta: leitura, divagação, versos.”

Quando ele dizia ter indulgência pela “vida particular” dos gênios, referia-se à homossexualidade dos tais gênios – por essa época, Proust já se descobrira homossexual, e decerto esperava que o mundo tivesse indulgência por sua “vida particular”.

Quanto a “estar separado de mamãe” ser o cúmulo da miséria para um adolescente de 14 anos, mesmo no século 19, isso mostra bem como Proust era afetado e dependente de “maman”, como ele chamou a dita cuja até o fim da vida.

É que Proust sofria de asma. Isso diz muito acerca de uma pessoa. Uma crise de asma é algo assustador tanto para quem é atacado, quanto para quem assiste ao ataque da doença. A pessoa fica tentando sorver o ar em desespero, arfando ruidosamente, como se estivesse nas vascas da morte. A família do asmático, temente dessas crises, em geral protege-o em excesso, cerca-o de todos os mimos. Quem é cercado por todos os mimos, bem, torna-se mimado.

Proust era um mimado.

Para sorte dele e da literatura universal, a família tinha posses e podia-lhe suprir as manhas. Vivia às expensas do pai, um médico bem conceituado. Frequentava os salões franceses, pagava jantares suntuosos aos amigos, varava as noites em claro, ia dormir pela manhã e acordava à tarde.

Quando a mãe morreu, sentiu-lhe palpitar a tal premência do tempo. Trancou-se em um apartamento de propriedade do tio, forrou-o inteiramente de cortiça para deixar os ruídos da rua na rua, muniu-se de uma pena de aço e de cadernos escolares, e começou a escrever “Em Busca do Tempo Perdido”. Levou 14 anos para encher 75 cadernos, um total de 3.500 páginas dividido em sete alentados volumes.

Em Busca do Tempo Perdido é intrigante desde o título. Quem não gostaria de recuperar o tempo perdido? Mas como buscá-lo? Como reaver algo que já não existe mais, que mudou para sempre? Para Proust, o tempo, no decorrer de parte de uma vida, transforma uma pessoa em outra. Como fazer retornar aquela pessoa que se foi?

Não são apenas as pessoas que mudam com o tempo. Cidades, países e instituições mudam também, porque são organismos vivos. Porto Alegre não é mais a cidade de aragem europeia e bucolicamente provinciana que era nos anos 40. É uma cidade mais impessoal, mais selvagem, mais cosmopolita e menos alegre.

O Brasil não é mais o país da manemolência e de macunaímas canalhas, mas simpáticos, que era nos anos 60. É um país de empreendedores, sejam eles empresários progressistas, sejam eles bandidos do crime organizado. Grêmio e Inter não são mais clubes periféricos como eram até outro dia.

São dois dos melhores pagadores do futebol brasileiro, dois clubes que inspiram paixões dementes (mesmo) em milhões. Mudaram, pois. Mas a “personalidade” dos clubes não deveria mudar. Grêmio e Inter têm, cada um, sua identidade e só se portando conforme essa identidade é que alcançam sucesso.

Proust manteve sua identidade. Em outubro de 1922, ele contraiu uma pneumonia. Seu estado de saúde, desde sempre precário, se agravou. Em 17 de novembro, a situação era crítica. Proust trabalhou na correção das provas do livro até alta madrugada.

Às 10 horas, pediu que lhe trouxessem cerveja do bar do Ritz (tinha de ser do Ritz). Logo depois, assustado, chamou Celeste, sua governanta. Disse-lhe ter visto, dentro do quarto, uma mulher “enorme e escura”. Logo em seguida chegaram ao apartamento seu irmão Robert e um médico. Alarmado, o médico decidiu aplicar-lhe uma injeção. Proust não queria, debateu-se, mas foi seguro por Celeste e Robert. O médico picou-lhe o braço e ele reclamou:

– Ah, Celeste, por quê?...

Robert, apiedado, perguntou:

– Dói? E ele:

– Oh, sim, meu caro Robert.

E nada mais disse. Morreu como o menino mimado que era.

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