sábado, 7 de janeiro de 2012



08 de janeiro de 2012 | N° 16940
PAULO SANT’ANA


O joão-de-barro e o mil-folhas

Comigo se dá que sou um diabético contraditório. Eis que o Guerrinha morre de rir comigo: peço no bar um doce mil-folhas e uma Fanta Zero. Aquele doce cheio de cremes, de uma camada superior açucaradíssima, de folhados, no entanto bebo uma Fanta Zero. Como posso ser tão controverso? Um doce repleto de açúcares e um refrigerante sem nenhum açúcar!

Foi então que quinta-feira passada, na Rua Florêncio Ygartua, sentei a uma mesa de calçada, ao ar livre.

E pedi ao garçom as minhas mil-folhas e Fanta Zero. Estava me deliciando com meu pedido, quando aconteceu o milagre: pousou em cima da minha mesa um joão-de-barro. O barreiro não se fez de rogado, foi mordiscando logo o meu mil-folhas. Picou tanto, que chegou à camada de creme.

Eu fiquei estático, com medo de que ele se assustasse e fugisse.

Durante longos 90 segundos – só quem já trabalhou em televisão sabe o que duram 90 segundos –, o barreiro ficou bicando o meu mil-folhas, entre o porta-guardanapos e a garrafa de Fanta.

Por fim, enfarado talvez com o mil-folhas que comigo compartilhou, o joão-de-barro levantou voo, deixando em mim a nostálgica lembrança de um pássaro que sentou à minha mesa sem ser convidado, mas que foi recebido por mim com incrédula admiração.

Estranho bar esse da Florêncio Ygartua, quase esquina da 24 de Outubro.

Começa que todos os garçons e demais atendentes usam uma camisa amarela com o letreiro MARCHA COM JESUS.

Distribuem folhetos dizendo que as câmeras de Jesus estão ligadas por onde andamos no mundo, mas que Jesus não se serve das câmeras para espionar-nos, mas, sim, para guiar-nos pela vida, ensinando-nos os bons caminhos.

Eu digo bar estranho porque os barreiros pousam em cima das mesas e os pardais, mais esquivos, ficam rondando o chão das mesas, à procura de restos de lanches deixados pelos clientes.

Um pardal bicou um tablete de açúcar do meu mil-folhas, que caíra ao chão, levantou voo e saiu fugindo para algum esconderijo com o seu butim.

Há no bar muitas folhagens, o que lhe empresta um ambiente silvestre, isso é o que deve ter atraído em primeira instância os passarinhos.

Em segunda instância, o que os atrai são mesmo os doces e salgados que servem nas mesas e que acabam caindo em fiapos no chão à sua rapina.

Estranho bar da Florêncio Ygartua. Estranha e milagrosa cena a que assisti naquele bar: um joão-de-barro em cooperativa comigo, devorando o mil-folhas, as pessoas ao redor estupefatas, como se eu fosse um São Francisco de Assis a confraternizar com os pássaros e as feras na região da Úmbria.

Se há uma coisa que eu mais queria saber é o que o santo de Assis soube: interpretar a linguagem dos pássaros e os rugidos das feras.

Se eu os interpretasse, aquele pequeno pipilar do joão-de-barro certamente quereria dizer o seguinte: “Na próxima vez, vê se põe menos açúcar nesse teu mil-folhas, isso pode abalar a minha taxa glicêmica”.

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