terça-feira, 8 de novembro de 2011



08 de novembro de 2011 | N° 16880
DAVID COIMBRA


O Caso do Ovo Frito

Tem, por exemplo, a banha de porco. Uma comida fica muitíssimo melhor quando feita com banha de porco. Um feijão preparado com banha de porco é incomparável. Incomparável! Mas o que eles dizem da banha de porco? Ah, a banha de porco faz mal, a banha de porco entope as artérias, é um crime usar a banha de porco nas refeições, você vai acabar morrendo de tanto cozinhar com a banha de porco. São essas as coisas que eles dizem.

Mas como acreditar neles? Eles perderam a credibilidade depois do Caso do Ovo Frito. Porque o que se falava, o que ELES falavam sobre o Ovo Frito era que o Ovo Frito era um assassino. Que o Ovo Frito matava. Por anos isso. Décadas. Então, mais recentemente, o que se descobriu? Que não é nada disso, que o Ovo Frito não faz mal a ninguém, que o Ovo Frito é bom.

Certo, viva o Ovo Frito. Mas e o passado? E o que se perdeu nesses anos todos? Quantos ovos fritos deixei de comer, eu que adoro ovo frito, só por causa deles? É como aqueles caras que passam 20 anos da vida presos no corredor da morte. Passado esse tempo todo, alguém faz um teste de DNA e descobre que o cara é inocente. Ele sai da cadeia aliviado, só que, atrás dele, restaram aqueles 20 anos na prisão. Quem os restituirá? Quem irá me restituir todos os ovos fritos que não comi?

Portanto, cozinharei com banha de porco, sim. Como cozinhava minha avó, autora de pratos de feijão com arroz inefáveis e de ovos fritos comoventes. Meus olhos marejam quando lembro daqueles ovos fritos da minha infância.

Alguém talvez argumente que ovo frito é um prato simples. Aí é que está: ser simples não é fácil. Simplicidade exige naturalidade, naturalidade exige destreza. As pessoas que fazem as coisas com simplicidade fazem com que o fazer pareça ser simples. Não é. Toda aquela simplicidade e toda aquela naturalidade derivam da suprema sabedoria.

Um ovo frito. Você pega uma daquelas frigideirazinhas especiais para fritar ovo. Elas têm a circunferência de um ovo frito e o fundo confeccionado em material que impede que o ovo fique grudado depois da fritura. Você deposita ali uma colher de banha de porco ou manteiga ou até mesmo óleo vulgar. Espera que o óleo esquente até chiar, é importante que fique bem quente. Então, quebra a casca do ovo de um único golpe.

Este é um passo decisivo: você precisa romper a casca sem ferir a gema que dorme no núcleo do ovo. Ou seja: você precisa desferir um golpe seco, agudo, preciso e definitivo na casca, mas sem ser violento em demasia, ou tudo estará perdido. Em seguida, há que fazer com que o ovo se deite amorosamente na frigideira, ele tem de se espalhar com harmonia, a clara na periferia a gema no centro, tudo certinho.

E, a partir daí, ocorre o processo de fritura propriamente dito. As bordas terão de ficar tostadas, da cor do caramelo escuro; a clara haverá de ficar seca, mas jamais queimada, ela não poderá dispensar certa suculência; e a gema, ah, a gema, essa sim, essa é o ponto culminante, pois a gema tem de ficar mole, porém intacta.

Atingido esse ponto, desligue rapidamente o fogo, insira uma escumadeira com critério de cirurgião por sob a clara e erga o ovo frito com todo o cuidado, lentamente, deixando o óleo escorrer pelos orifícios da escumadeira. E faça-o aterrissar sobre o monte de arroz ou sobre o pão branco. PER-FEI-TO!

Agora, há de se fazer uma ressalva: você pode seguir todos esses passos minuciosamente, pacientemente, escrupulosamente, e ainda assim não existe segurança de que você preparará o ovo PER-FEI-TO.

Por quê?

Porque é necessário saber fazer. Ter a mão, entende? Como tinha a minha avó. Não é qualquer um que faz as coisas simples com simplicidade. Fritar um ovo PER-FEI-TO ou fazer um gol na cara do goleiro. Parece fácil. Você e o gol tão grande, sete metros de uma trave a outra. Você e um ovo, tudo tão singelo. Mas não é fácil.

Não para iniciantes. Só é fácil para quem tem mão de cozinheiro, para quem é atacante. Uma casa, para ser um lar, precisa ter alguém que realmente saiba cozinhar. Um time, para ser vencedor, precisa ter dois atacantes. Abaixo o sistema com três meias.

david.coimbra@zerohora.com.br

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