sábado, 5 de novembro de 2011



05 de novembro de 2011 | N° 16877
CLÁUDIA LAITANO


O fantasma

A forma como reagimos à notícia de uma doença, a nossa ou a dos outros, diz muito sobre quem somos, mas talvez mais ainda sobre o que nem sabemos que somos. A doença, em certo sentido, é a corporificação de um fantasma – e cada um reage à visita de uma assombração não apenas do jeito que sabe, mas do jeito que pode.

Quando o fantasma aparece diante de nós, o susto é tão grande, que pode abalar tudo que achávamos que sabíamos sobre nossa personalidade.

Quando aparece para os outros, podemos ser solidários ou indiferentes, cínicos ou compreensivos, e tudo isso vai depender tanto da nossa relação com o doente ou seus familiares quanto da nossa capacidade de sentir empatia pelo outro em abstrato.

As mensagens raivosas dos que usaram a doença de Lula como pretexto para extravasar opiniões políticas chocam não apenas porque barateiam o sofrimento de uma pessoa, mas porque banalizam uma dor que não é só a daquele doente específico, por acaso uma personalidade pública, mas de todos os que já tiveram um caso parecido na família – ou apenas compartilham o medo, mais do que concreto, de passar por esse drama.

Nada é mais universal do que o medo da morte, e nenhuma doença dá mais medo do que o câncer. Suas manifestações em diferentes partes do corpo, suas causas misteriosas, sua relação com estilo de vida, estado de ânimo, prazeres culpados, tudo contribui para essa aura maldita que a ciência mal e mal vem dando conta de esclarecer.

Nos últimos anos, muitas celebridades têm vindo a público falar da doença e expor o tratamento. O valor desses depoimentos é imenso, principalmente em um país como o Brasil, onde o sofrimento da doença é agravado pela precariedade da saúde pública e pela falta de informação.

Mas um efeito colateral visível da cultura do compartilhamento é essa sensação generalizada de que todo mundo em volta tem ou já teve câncer: não apenas amigos próximos e conhecidos, mas também atores famosos, políticos, escritores...

Há, sim, uma epidemia em curso, mas de hipocondria – um mal-estar generalizado causado por essa sensação de que estamos todos sob o constante ataque de inimigos invisíveis, comendo, bebendo e respirando substâncias silenciosamente assassinas.

Claro que já havia hipocondríacos mesmo em épocas em que as doenças eram menos compartilhadas. Alguns dos mais geniais deles foram reunidos no delicioso livro Os Hipocondríacos – Vidas Atormentadas, de Brian Dillon. Marcel Proust, Charles Darwin e Michael Jackson, entre outros, tinham em comum, além do talento, a suspeita permanente de que suas vidas estavam em risco, traço que apareceu, em menor ou maior intensidade, em suas obras.

O que o livro sugere como reflexão para nossa época tão alarmada com tudo é que o medo permanente costuma provar-se muito mais letal do que as doenças, reais e imaginárias, que assombram nossa imaginação mesmo antes de atingir o nosso corpo.

claudia.laitano@zerohora.com.br

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