quarta-feira, 2 de novembro de 2011



02 de novembro de 2011 | N° 16874
JOSÉ PEDRO GOULART


O umbigo do R10

Domingo último dei uma voltinha pelos aspectos sombrios da minh’alma. Deixei de lado o caminho em direção à compreensão e ao equilíbrio, o qual gosto de pensar que me oriento, e provei um gole do veneno inebriante da vingança. Já sóbrio como agora estou diria, se acreditasse que seria ouvido: “Pai, afasta de mim esse cálice”. Julgamentos públicos são perigosos, deixam marcas eternas, isso quando não são letais.

Se qualquer paixão tem preço, imagine no futebol. A paixão é um sentimento brutal de fé. Esperamos por parte de quem depositamos nossa paixão que nos seja devolvida, se possível com juros, toda a energia gasta com nosso desprendimento amoroso. Ídolos não deveriam envelhecer, errar, muitos menos nos trair.

A arquitetura dos sentimentos tem pilares conhecidos. A família, por exemplo, por mais que se tenham razões em rompimentos o coração resiste em manter o vínculo afetivo que assegure um certo alento. Há também as amizades de infância, nossa rua, cidade, comunidade: as tais raízes.

Há 10 anos, quando Ronaldinho escapou do Grêmio pela porta dos fundos, a mãe dele justificou o desaforo: “Os filhos pertencem ao mundo”. Nunca esqueci. E agora, sob vaias ensurdecedoras, disse o R10, “Perto do som da torcida do Flamengo, isso não é nada”. Duas lógicas parecidas, duas distorções fraudulentas. Ninguém – o poeta sabe, todas as mães deveriam saber – pertence ao mundo, isso é uma generalização paroquial. A gente pertence ao umbigo.

E ao falar da torcida do Flamengo, Ronaldinho apela por proteção. Imagina que pode substituir o chá que é fervido com a raiz da árvore genealógica dele por outra alquimia. Mas não pode. O Flamengo é o umbigo do Zico, o Galinho de Quintino; a casa do Júnior; e até do Fio Maravilha. A bandeira rubro-negra já tem passista e mestre sala, o samba do Flamengo já tem autores. R10 no Flamengo nunca será.

O roteiro do jogo de domingo foi como os bons roteiros devem ser, teve prenúncio de tragédia e reviravolta. Começou parecendo que daria razão aos pragmáticos, os tolos do ouro; mas terminou com a poesia ilusória de que certos ajustes de contas insinuam.

Assim, o chute do jogador mais improvável saiu preciso quando foi preciso e o goleiro tomou o gol quando deveria, como se fossem atores cumprindo um papel. Em todos havia uma sede de remissão dostoievskiana. A torcida lavou a alma. No final, os personagens saíram de cena e foram cada um para o seu canto, ruminando verdades sobre honras e circunstâncias. Outros, os que não tinham canto, foram pro limbo.

zp.zepedro@terra.com.br

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