quarta-feira, 3 de junho de 2009



03 de junho de 2009
N° 15989 - PAULO SANT’ANA


O Leito de Procusto

Passei quatro dias e meio de cama, delirante e tonto. Rolava-me na cabeça o cérebro oco.

Cheguei a pensar que estava sendo alvo da cólera, da febre amarela ou da malária. Mas o neurologista Clovis Francesconi me dissuadiu com seu diagnóstico: era labirintite o que tinha ou tenho.

E só voltei a escrever hoje porque os quatro interinos que me substituíram, cada um deles, estavam armando um golpe para me derrubar, ou seja, sempre que lhes surge a oportunidade de me substituir na coluna, que não escrevo por doença, quando estou acamado, eles me transferem para um verdadeiro Leito de Procusto, serrando-me as pernas se meu corpo for maior que a cama que eles me preparam, ao se mostrarem brilhantes para escrever em meu lugar.

Chegou ao ponto em que o Alexandre Bach, que me dizem ser o editor-chefe de um jornal alternativo, escreveu a seguinte frase me substituindo na minha coluna: “O crack não deixa pedra sobre pedra”.

Esta frase gostaria eu de ter escrito. Fiquei furioso de inveja quando a li escrita por interino meu. É uma frase digna de um Otto Lara Resende, de um Millôr Fernandes, de um Luis Fernando Verissimo.

E o danado vem escrever esta frase monumental, um achado, uma pérola, um diamante, exatamente na minha coluna, como meu interino?

Não há dúvida, quer tomar o meu lugar.

Eu já disse e vou repetir: não há nada mais perigoso do que um interino priápico.

Passei quatro dias e meio na cama como se estivesse nos porões sujos de galeria de presídio, claro que não sob o ponto de vista material, mas espiritual.

Não podia levantar-me, que a tontura me derrubava. Não podia criar nem dar asas à imaginação porque a labirintite abalou-me os dois hemisférios do cérebro, subtraindo-me até a memória.

Assisti nos dois últimos dias a um desfile de 48 horas, em que permaneci acordado, de centenas de especulações de jornalistas e de especialistas em aeronáutica sobre as causas do desaparecimento do avião da Air France sobre o Atlântico.

Apenas me consolei das exaustivas conjecturas televisivas quando um especialista em aviação me ofereceu uma estatística impressionante: a cada 1 milhão e 400 mil decolagens de aviões, um só avião se desastra. Ou seja, não existe transporte mais seguro que o avião.

Ou seja, o avião sobre cujas turbulências permanentes que se abatem sobre ele resiste a elas impavidamente por 1 milhão e 400 mil vezes, no entanto não resiste um dia a uma só turbulência entre todas aquelas e cai.

É quase a mesma proporção da Mega Sena, ao inverso: 30 milhões de apostadores jogam e um só deles é premiado.

Azar de quem estava no avião que caiu e sorte de quem tirou a Mega Sena.

Como eu nunca vou ganhar na Mega Sena, pensei eu em meu leito de doença, não vai ser o meu avião que um dia vai cair.

Mas aí raciocinei: mas se tenho o azar de jogar há 20 anos na Mega Sena e nunca ser premiado, este azar célebre que tenho não vai acabar me destinando numa viagem um avião que irá cair?

Em meio à labirintite, no leito, me apareceu o dedo mínimo da mão direita doendo, doendo, desconjuntado, quando o dobro, ele não se reestica, não volta para o lugar.

O Dr. João Elera Gomes, mestre em ortopedia, quer fazer hoje à tardinha uma infiltração no meu dedo. Infiltração em dedo (extremidade) de diabético? E a infiltração aumenta o açúcar no sangue, ainda mais esta.

Consultei imediatamente pelo telefone meu guru em endocrinologia, Dr. Jorge Gross. Ele examinou meu problema e me disse: faz a infiltração.

Então telefonei para o Dr. João e perguntei se infiltração dói muito. Ele me respondeu: dói, mas não muito. Gelei.

Telefonei então para o Dr. Matias Kronfeld: “Dr. Matias, o Dr. João diz que dói, mas não muito, o senhor sabe que em mim não pode doer nem um pouco”.

E o Dr. Matias: “Afinal, Sant’Ana, tu és um homem ou um rato?”. E eu secamente: “Sou um rato”. O clínico-geral caiu na gargalhada.

E lá vou eu, o rato, fazer minha infiltração à tardinha, depois de roer todos os edifícios no caminho, como dizia o Drummond.

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