Aqui voces encontrarão muitas figuras construídas em Fireworks, Flash MX, Swift 3D e outros aplicativos. Encontrarão, também, muitas crônicas de jornais diários, como as do Veríssimo, Martha Medeiros, Paulo Coelho, e de revistas semanais, como as da Veja, Isto É e Época. Espero que ele seja útil a você de alguma maneira, pois esta é uma das razões fundamentais dele existir.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
CLÓVIS ROSSI
Votos para 2010, talvez inúteis
SÃO PAULO - Os votos para 2010, obviamente pensando em um ano eleitoral, nem são meus mas de Delfim Netto, em recente artigo para esta Folha. Delfim leva a vantagem de ter sido um ícone da direita durante seus tempos de czar da economia na ditadura, agora transformado em conselheiro de um presidente originalmente de esquerda, embora adernado à direita desde que chegou ao poder.
Escreveu Delfim: "A eleição de 2010 não pode se fazer em torno das pobres alternativas de, ou voltar ao passado, ou dar continuidade a Lula. A discussão precisa incorporar os horizontes do século 21 e a superação dos problemas que certamente restarão do seu governo".
Um dos problemas, no varejo, foi capturado por João Carlos Magalhães, o enviado da Folha ao Suriname. Uma legítima filha do Brasil, ela também uma Silva, de nome Maria Raimunda, escapou do conflito com os locais e reclamou que, "no Brasil só querem saber de quem tem instrução (...) Aqui, tiro até R$ 2.000 [por mês]. Lá [no Brasil], não era nem metade".
Não é mais aceitável que muitos Silvas da oitava potência do mundo continuem preferindo todos os perigos da clandestinidade, em um ponto perdido do fim do mundo, ao seu próprio país.
No atacado, tampouco é aceitável que a oitava potência do mundo, mesmo após o mais longo ciclo de crescimento de sua história recente, continue no 75º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano.
Para não falar do 75º lugar também no índice de percepção de corrupção, o que não pode ser mera coincidência, ou nos vergonhosos resultados dos estudantes brasileiros em todas as medições comparativas internacionais.
Para os que não se conformam com tudo isso, votos de um 2010 que traga o Brasil ao século 21. Aos que se conformam -e parecem ser maioria-, votos de um pouco mais de ambição.
crossi@uol.com.br
ELIANE CANTANHÊDE
Não viu, não leu, mas assinou
BRASÍLIA - Lula faz na crise com as Forças Armadas o que fez no caos aéreo: empurra com a barriga. Sem condições de decidir entre Jobim e os militares, de um lado, e Dilma, Tarso Genro e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos), de outro, ele simplesmente não decide. Foi para a Bahia e deixou a confusão no ar, até os ventos do novo ano.
Depois de lançar o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, com ex-militantes de esquerda emocionados e Dilma chorando, Lula não tem ambiente político para revogar trechos do texto, como exigem Jobim e militares.
Eles reclamam que são parte diretamente interessada e que todas as suas sugestões foram ignoradas, produzindo um texto "desequilibrado" -que cobra todas as responsabilidades da área militar da ditadura e nenhuma dos seus opositores, entre eles os próprios Dilma, Tarso e Vannuchi. Como se a guerra continuasse, mas com um lado só armado. E não é o lado militar.
Cobrado por Jobim, Lula disse o de sempre: assinou o decreto, mas não viu, não leu e não sabia de nada.
Andava muito ocupado com Copenhague. Mas, como é contra revanchismo, tomaria uma atitude. Lula disse e Jobim reproduziu para os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica, que entenderam como uma decisão de mudar o texto. Entenderam errado. Lula não vai revogar uma vírgula, só pretende esvaziar os tópicos críticos na implementação do plano.
O seguro morreu de velho, e um oficial adverte que "intenções são intenções, e o que vale é o que está escrito". Ou seja, o plano.
O risco é que, na hipótese de vitória de Dilma em 2010, em vez de negociarem com Lula e tendo o marechal Jobim como ministro, os militares vão ter que engolir a "ex-guerrilheira" (como dizem), tendo um petista qualquer na Defesa.
Lula viajou, mas a crise continua.
No mínimo, a crise de desconfiança de lado a lado, com Jobim louco para jogar o quepe e tirar a farda.
elianec@uol.com.br
CARLOS HEITOR CONY
Nostalgia da verdade
RIO DE JANEIRO - Pequena (ainda) crise no setor militar neste final de ano. O governo deseja implantar um necessário Plano Nacional dos Direitos Humanos, que cria uma "Comissão da Verdade" para apurar torturas, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar, que durou 21 anos, de 1964 a 1985.
Dois comandantes, o do Exército e o da Aeronáutica, ameaçam se demitir caso o presidente da República não revogue alguns trechos do referido plano considerados revanchistas pelos chefes militares.
A Comissão da Verdade pretende apurar o que até agora não foi suficientemente apurado: o gênero e o grau da repressão militar durante os anos de chumbo. Muito já se apurou, mas não integralmente. Neste particular, o plano pode colocar realmente um ponto final na pesquisa macabra que vem sendo feita espasmodicamente, e sempre de forma incompleta.
O nó da questão, ao que parece, é a retirada do nome de algumas autoridades do regime que batizam pontes, prédios, estradas e obras públicas, como a ponte Rio-Niterói, outra ponte em Brasília e, espalhados pelo país, centenas de homenagens com o nome de civis e militares que se destacaram na repressão.
Bem, pelo menos aqui no Rio, ninguém se refere à ponte Rio-Niterói como a ponte marechal ou general isso ou aquilo. É simplesmente a ponte Rio-Niterói -e basta.
Evidente que é necessário apurar a verdade, apesar dos 24 anos passados.
É uma lição para o futuro. O golpe de 64 não foi apenas de militares, que seriam os executivos da força. Muitos civis foram os inspiradores que cobravam das casernas um golpe de Estado contra o governo de João Goulart.
Pelo que parece, há uma certa nostalgia do desastre, grupos interessados em manter acesa a eterna luta do bem contra o mal.
Feliz Ano Novo meus amigos
31/12/2009 e 01/01/2010 | N° 16202
PAULO SANT’ANA
Feliz Ano-Novo
Se eu tivesse que pedir alguma coisa ao Ano-Novo, iria pedir coisas praticamente impossíveis de serem conseguidas, embora sejam facilmente conseguidas.
Pediria que no ano que vem não se repetisse, em nenhum dos 365 dias, aquela execução bárbara havida agora em dezembro em Eldorado do Sul, quando um avô e um neto de apenas nove anos de idade foram degolados simplesmente por assaltantes dentro de sua casa.
Eu só pediria que ninguém mais injetasse dezenas de agulhas no corpo de nenhuma criança, como aconteceu lastimavelmente na Bahia e no Maranhão.
Se eu tivesse de pedir alguma coisa ao Ano-Novo que se avizinha, desejaria que fossem finalmente, depois de 40 anos do abandono penitenciário, construídas novas cadeias no Rio Grande do Sul, dando início, pelo menos, ao fim desse vergonhoso monumento à anticivilização que é milhares de presos se amontoando em cubículos imundos e a perversidade entre eles se consagrando pela entrega da administração das galerias nas mãos dos próprios detentos.
Se este Novo Ano tivesse de ser bom, que o fosse por não se fecharem mais hospitais como condenavelmente se vêm fechando entre nós, que se abrissem os hospitais disponíveis e fossem construídos novos estabelecimentos de saúde, ao contrário do que vem desastradamente acontecendo: a equação é desnorteante, quanto mais aumenta o número de pacientes mais diminui o número de vagas.
Que, de passagem, se acabasse com a fila para a cirurgia e para a consulta, que nos remete para o tempo das cavernas. Uma cirurgia de urgência só pode ser feita anos depois de agendada, quando já restam mortos ou mutilados os que apodrecem nas filas.
E que, antes que os homens de todas as nações se entendam sobre como vão diminuir as emissões e os desmatamentos, não mais saia o Obama rabanando da conferência do clima, clamando por ação dos outros países sem prometer qualquer ação dos seus EUA.
Não mais fique na moita a China, não arredando pé do crescimento anual de 8% mesmo que isso contribua decisivamente para o envenenamento das paisagens e para o rumo do caos na sobrevivência da espécie humana no planeta.
Que, mesmo assim, em meio a esse suicídio lento a que se atira a humanidade para um fim rápido, mesmo que por milagre, cessem essas tempestades e inundações que tantas vítimas têm feito e tantas desgraças pessoais têm causado aos flagelados.
Que diminuam os escândalos políticos, que os homens sejam mais gentis e as mulheres mais condescendentes, que a paciência seja uma regra nos engarrafamentos e diminuam os assaltos, mas que, se aumentarem, pelo menos os assaltantes não matem desnecessariamente suas vítimas, que se levem os anéis mas que fiquem os dedos.
Que se elejam os melhores ou os menos ruins e que o entendimento prevaleça entre os homens, que se moderem o Irã e o Hugo Chávez, que a dupla Gre-Nal faça papel melhor que o de 2009 e, principalmente, não tenha mais apagão na energia elétrica nem na ternura dos corações.
31/12/2009 e 01/01/2010 | N° 16202
RICARDO SILVESTRIN
A música que você ouve
Li no excelente livro Contra-Indústria, de Estrela Leminski e Téo Ruiz, que, nos Estados Unidos, a prática do jabá é proibida por lei. Aqui, no Brasil, não é.
O músico Lobão já tentou, sem sucesso, que se aprovasse também no nosso país a proibição. Jabá é o que, se provado que existe, seria chamado de verba de marketing.
Na prática, segundo o livro, as grandes gravadoras comprariam espaço em rádios e em televisões para que toquem, com um enorme número de repetições, as suas músicas. O resultado é que quem ouve, sem estar informado disso, acabaria achando que se trata de um grande sucesso, conquistado por seus próprios méritos estéticos.
Funcionaria como uma compra de espaço de mídia. Para anunciar um produto, a repetição da propaganda serve para que o maior número de pessoas interessadas conheça, lembre, grave suas qualidades e queira experimentar.
Depois de experimentado é que podem dizer se gostaram. Nessa linha, o argumento dos supostos jabazeiros é que, se uma música não for aprovada por quem ouve, não vai virar sucesso. Não há repetição que faça sucesso por ela. Contudo, a orientação apenas pelo gosto da audiência não faz esse gosto avançar.
Música não é só produto. É cultura. Não custa repetir a frase do ex-ministro da cultura, Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”.
Ainda no paralelo com a propaganda, há um artigo do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária que recomenda deixar claro quando se trata de uma mensagem publicitária.
Por exemplo, quando um anúncio é criado para parecer uma matéria de revista ou de jornal, deve vir escrito, com destaque, que se trata de um informe publicitário. O mesmo poderia ser aplicado a essa chamada verba de marketing das gravadoras.
Uma locução no rádio anunciaria que se trata de um espaço de divulgação de determinada música comprado pela gravadora. Na TV, o apresentador teria de dizer o mesmo. Assim, o espectador poderia julgar a música com mais liberdade. Se fosse uma verba de marketing, não pareceria lógico que devesse cumprir as mesmas regras para exibição de peças de propaganda? Quem regula isso?
É certo que hoje vivemos um momento diferente também da indústria da música. A troca de arquivos de áudio pela internet, o barateamento dos custos de produção com a tecnologia digital, tudo isso faz com que trabalhos de diferentes propostas, mais arte do que mercado, possam encontrar novos meios para que cheguem às pessoas.
Mas não podemos deixar a mídia de massa nas mãos do mercado pelo mercado.
As grandes emissoras também devem, pelo próprio contrato que concede ocupar esse espaço, levar arte, cultura e entretenimento sadio para a população. Não existe livre mercado sem lei que o regulamente. Os americanos que o digam.
31/12/2009 e 01/01/2010 | N° 16202
L. F. VERISSIMO
O futuro do GPS
Ainda não me refiz da primeira vez que vi um GPS funcionando. GPS, já sabia todo o mundo menos eu, quer dizer Sistema de Posicionamento Global, em inglês. É um aparelho que mostra onde estamos numa telinha e diz como chegar aonde queremos ir. Diz, literalmente. O danado do aparelho não apenas fala, como é poliglota: você pode escolher a língua com a qual será guiado.
Durante a Copa do Mundo na Alemanha, que foi quando conheci o engenho mágico, éramos orientados por uma simpática portuguesa que não nos deixava confundir ingang com aufgang, chamava rotatória de “rotunda” e nunca nos falhou. Nem comecei a tentar compreender como a visão de um satélite estacionado sobre nossas cabeças chegava ao carro e se transformava em voz com sotaque português. Eu ainda não sei bem como funciona grampeador.
Mas posso imaginar como será o futuro do GPS. É provável que um dia ele assuma o volante e dispense o motorista, eliminando uma etapa no processo de dar direções e só usando sua voz para gritar com as crianças no banco de trás.
E não é impossível que, com o tempo, surja uma espécie de GPS moral, um sistema de orientação não para veículos mas para gente, que mostre o caminho a ser seguido, os desvios éticos a serem evitados e a melhor saída para qualquer “rotunda” de incertezas que possa nos comprometer. O aparelho não seria maior do que um celular que cada um carregaria no bolso ou na bolsa.
Porque a verdade é que todos os nossos antigos sistemas de orientação – o religioso, o familiar, o jurídico, o filosófico – falharam, somos uma geração à deriva, sem giroscópio. Com o aperfeiçoamento do GPS seríamos guiados por uma entidade superior que tudo vê e tudo sabe, um satélite estacionário sem nenhuma dúvida sobre o que é certo e o que é errado e o que nos convém. Bastaria levar o aparelho ao ouvido e escutar seus conselhos. Na voz que escolheríamos.
VOTO
(Da série “Poesia numa hora dessas?!”)
Só pra fugir
do clichê:
liz novo
ano fe!
31/12/2009 e 01/01/2010 | N° 16202
DAVID COIMBRA
O Passeio do Filósofo
Em 2010 queria conhecer Königsberg. Que nem é mais Königsberg, é Kaliningrado. Fica na Rússia, ficava na Alemanha, a guerra muda mapas.
Mal chegado a Königsberg, iria direto procurar certa rua da cidade, “O Passeio do Filósofo”. Chama-se assim em homenagem a Immanuel Kant, um dos maiores filósofos da História. Kant foi um Sócrates do século 18, seu sistema de pensamento pode ser usado até para saber como o brasileiro vai votar nas eleições deste novo ano.
Eu, quando passear pelo Passeio do Filósofo, o farei pontualmente às 15h30min, como Kant fazia todos os dias, todos, sem exceção. Era tão pontual em seu passeio, que as donas de casa acertavam os relógios ao vê-lo passar. Kant caminhava em silêncio, concentrado, respirando pelo nariz. Dizia que a respiração nasal evita resfriados – o homem era filósofo, não médico.
Em Königsberg, Kant nasceu, viveu sua longa vida e morreu. Nunca saiu de lá. Por duas vezes, quase se casou. Hesitou tanto, que ambas as pretendentes desistiram; uma se mudou da cidade e a outra arranjou um noivo mais determinado. O que foi uma sorte para a filosofia. Tivesse mulher e filhos, Kant não promoveria a revolução do pensamento que promoveu.
Sua obra-prima, Crítica da Razão Pura, ele só a lançou depois dos 50 anos de idade. É uma experiência densa ler este livro. Porque, no início, dói. O texto é intricado, cada sentença exige reflexão e Kant não facilita a vida do leitor com exemplos. Mas, após algum esforço, fiat lux!, tudo começa a se encaixar.
Só que continua a doer.
Numa redução tosca, grosseira e abusada de uma parte do pensamento de Kant, explico aqui que ele diz existirem duas formas de obter conhecimento: pela experiência, ou seja, a posteriori; e pela intuição, ou a priori.
O conhecimento intuitivo não é nenhum poder mágico ou sobre-humano. É uma das faculdades da inteligência. Vejo o meu filhinho de dois anos de idade usar esse poder todos os dias. Há coisas que ninguém disse para ele, que ele não viu na televisão, que lhe são inéditas, mas ele, simplesmente, “sabe”.
Os adultos também agem assim. Todos os dias. E é assim, mais com a intuição do que com a experiência, que tomam suas decisões na cabine indevassável. A reação do eleitor ao noticiário político é diversa da que espera o analista político. Donde as surpresas a cada apuração.
Por isso, duvido que o destino de Yeda já esteja traçado nas próximas eleições. Yeda vem sendo calcinada em seu governo, e de forma sistemática, e implacável, e incansável. Se construir para si uma imagem de vítima, incrustará uma cunha no nível intuitivo do eleitor. E aí entra no jogo o eleitor que não calcula, o eleitor silencioso, que tem vergonha de revelar como vota e que, ao votar, usa menos a reflexão e mais a intuição.
O eleitor kantiano, maioria entre os eleitores. Terá Yeda a sensibilidade e a humildade suficientes para comover esse eleitor? Não adianta ler Kant para descobrir. Há que se esperar o que escreverá 2010.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
MARCELO COELHO
Tempo de usar chapéu
O cruel não é que me apontem a calvície, mas que sugiram que leve um chapeuzinho à praia
NO FUNDO, toda essa história de Réveillon me parece um pouco mal pensada, pelo menos no Brasil. Quando a paisagem está coberta de neve, como nos Estados Unidos ou na Europa, o final do ano faz mais sentido.
Em plena dormência do inverno, é possível projetar um futuro, vá lá, de renovação e de esperança, para daqui a algum tempo. Espera-se. Entre nós, o fim do ano coincide com o auge do calor; tudo se aplasta num presente a pino.
Mais um ano! Tem razão Rubem Alves, numa coluna publicada há tempos no jornal: em vez de "mais um ano", deveríamos dizer "menos um ano".
Acrescento que, neste final de 2009, o "ano a menos" trouxe para mim uma novidade correlata -a do "cabelo a menos".
Sim, o sol deste dezembro iluminou, como nunca, minha pobre calota polar, na qual algumas mechas brancas e castanhas vão se assemelhando aos restos de geleiras tênues que, nas fotos das revistas, atestam o progresso do efeito estufa.
O calor, neste verão, continua o mesmo, enquanto na minha memória ecoa o velho comercial de xampu: "Mas os meus cabelos... quanta diferença!". O resultado de alguns dias na praia não se fez esperar. A cor puríssima de um chiclete de morango despontou, com ironias de segunda infância, no meu couro cabeludo -que não mais o é.
Um amigo, que não me via há algum tempo, enunciou a neutra verdade: "Finalmente, você está ficando careca." Não havia malevolência na observação. Tratava-se, principalmente, de uma questão de justiça; passando dos 50 anos, é certo que isso aconteça.
O que não é certo é ficar com o cocoruto cor-de-rosa, numa doçura de crepúsculo napolitano, em pleno verão paulista. E o cruel não é que me apontem a calvície, mas sim que, no caminho da praia, façam-me a sugestão acachapante: "Não é melhor levar um chapeuzinho"?
Não, mil vezes não. A começar pela escolha do modelo. Não me conformo com nenhum. O boné branco de beisebol, a meu ver, serve apenas aos extremos da idade humana: o início revoltado da adolescência (quando convém invertê-lo na direção da nuca) e o estado terminal da senilidade sorridente, conduzida pelo enfermeiro, quando saudamos o salva-vidas, o vendedor de biscoitos de polvilho, o homem do quiosque, com os gestos vagos e simpáticos que nos permite a hemiplegia.
Quanto ao panamá, o solene chapelão de palha clara que anda na moda entre os artistas, na minha opinião só alguma razão de saúde o justifica. Quem o usa por mera boniteza, ainda mais em ambientes fechados, desperta-me total desconfiança; adicione-se um charuto, e o sujeito está pronto a pontificar sobre qualquer assunto.
A coisa começou, acho, com Tom Jobim; aquelas entrevistas sobre passarinhos e árvores, com o panamá na cabeça, marcam sem dúvida o início da decadência do mestre. Excluído, sem mais comentário, o chapéu texano, sobra então a alternativa dolorosa do chapeuzinho de praia: abas curtas, pano mole, enterrado na cabeça, como se o seu usuário quisesse esconder o próprio rosto -mas o modelo é pequeno demais para esse fim.
Lembro-me de umas férias no Rio de Janeiro, entre o primeiro e o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. A economia estava à beira do colapso; o dólar explodia, e os juros iam atrás. Presidentes do Banco Central pulavam do cargo como pipocas.
Eu estava andando pelo calçadão, quando uma figura de ar apatetado apareceu na minha frente. Carregava braçadas de jornais; os óculos grossos e o sorriso fixo, causado pela ofuscante luz da manhã, faziam-no igual ao Mister Magoo.
Era um ex-ministro da Fazenda. Cobria-lhe a cabeça privilegiada um chapéu de praia redondinho, de pano azul celeste. Tive vontade de assumir o papel do "cidadão indignado" (figura comum nas imediações do Arpoador e de Copacabana) e interpelá-lo, dedo em riste, pela confusão reinante. Contive-me; alguém já devia ter feito isso durante o cooper do pobre financista.
Passou a crise, passou o ex-ministro, passou o tempo, ficou a memória do ridículo chapeuzinho. Chega o aquecimento global, chega o verão, chega 2010, e chega a hora do meu chapeuzinho também, a proteger minha cabeça desmatada.
Virão depois as meias de helanca com o tênis Rainha e a bengala, útil para fazer caminhadas e ameaçar cabeças de ex-ministros. Pensando bem, era o que já me faltava, uns bons anos atrás.
coelhofsp@uol.com.br
Feliz 2010! Cuidado com a rolha!
E sabe quem devia fazer a contagem regressiva para a Grande Virada? A VANUSA!
BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta! É amanhã! Prepara o figueredo! A Grande Virada!
Eu vou virar abóbora. E sabe quem devia fazer a contagem regressiva pra Grande Virada? A VANUSA! Aí a gente não entrava em 2010, ficava empacado em 2009. Nesse pagode sem pandeiro!
E uma amiga vai passar a virada VIRADA PRA LUA! E como se diz em Brasília: Feliz 2010%. Ou como estão dizendo umas amigas minhas: FELIZ HOMEM NOVO! E aquelas promessas de fim de ano? Eu vou fazer uma promessa diferente: "Prometo que vou começar a fumar e engordar uns 20 quilos". Rarará!
E chegou 2010. Parece ficção científica. Quando eu era menino, achava que em 2010 as cidades seriam cobertas por uma redoma de vidro e com ar-condicionado. E com um monte de carro voador. Pois já estamos em 2010 e São Paulo tá lotada de carro velho. E Capão Redondo não está coberto por redoma de vidro e nem tem ar-condicionado.
E isso é o que desejo para os meus leitores: BOAS ENTRADAS E MELHORES SAÍDAS. Porque o último que me desejou boas entradas, eu entrei pelo cano! Então: melhores saídas! E boas entradas! Só que uma amiga minha, em vez de entrar, quer ser entrada!
E o Lula disse que o brasileiro vai acordar no dia 1º com uma vida melhor. Com uma vida melhor. E um fígado pior! E sabe o que aconteceu com uma amiga no Réveillon passado? O vizinho jogou um rojão e acertou no vidro do carro dela. Rarará!
E um outro aproveitou o barulho dos fogos pra soltar um pum! E a passagem de ano do Rubinho? Os outros que vão passar! Rarará! E eu só não desejo para todos um GRAAAANDE 2010 por medo de que a gente não consiga chegar até o final!
E todo ano eu faço o mesmo pedido para a nação brasileira: feias, bagulhos e mocreias, evitem a praia. Senão o Ano Novo se assusta e não entra! Dilma e Serra, passem o Réveillon no escuro, pelo amor de Deus. Assustaram o Ano Novo! Rarará! E aí a gente empaca em 2009. Nesse pagode sem pandeiro!
E quem não tiver dinheiro pra champanhe, pega um saco vazio de supermercado e estoura. O que importa é o barulho. A festa. A GANDAIA! E é isso: muita champanhe, mas cuidado com a rolha! Rarará!
E muito Epocler, Engov e Xantinon. Porque vai todo mundo acordar mais seco que língua de papagaio. Rarará!
Nóis sofre, mas nóis goza. E hoje só amanhã! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno.
simao@uol.com.br
FERNANDO DE BARROS E SILVA
A marolinha e o navio
SÃO PAULO - O jornal "O Estado de S. Paulo" publicou na capa da sua edição do último domingo uma foto muito ilustrativa. Centenas de pessoas estão acomodadas ao redor de uma grande piscina. São famílias, homens, mulheres, crianças.
Trajes de banho, óculos escuros, drinques, celulares e máquinas fotográficas na mão, elas dirigem sua atenção sorridente a uma cena que a imagem não mostra: a legenda nos informa que todos ali acompanham um concurso de drag queen.
O conjunto lembra um pouco o Piscinão de Ramos, a praia artificial que Garotinho instalou na zona norte do Rio em 2001. Mas aqui estamos a bordo de um navio, num dos muitos cruzeiros pela costa brasileira que movimentam o turismo, cujo crescimento está ancorado na ascensão da classe C. No ano da marolinha, Lula levou o Piscinão de Ramos para passear em alto mar.
Trata-se, é claro, de uma boa notícia. O naviozão brega é um entre outros vários símbolos de inclusão que a realidade nos mostra. No auge do Real, sob Fernando Henrique, falava-se com orgulho do aumento do número de pessoas com acesso à dentadura. É só uma impressão, mas repare nas ruas se hoje não existe, entre os mais pobres, muita gente usando aparelho dentário.
TV de tela plana, celular com câmera, carro usado, passagem aérea mais barata que viagem de ônibus -são ícones de consumo da era Lula. A contrapartida são aeroportos cheios, trânsito demais nas ruas -o país que se descobre maior e mais apertado.
A velha classe média vê seus privilégios e sonhos de exclusividade frustrados pelos emergentes. Ao mesmo tempo, a violência urbana e a desagregação social em cidades como São Paulo e Rio projetam uma grande sombra de ameaças sobre as esperanças de todos.
Para onde vai afinal o navio brasileiro? A imagem sugere que estamos na rota da americanização sem escola. Muita gente ainda vai cair no mar, mas podia ser bem pior.
30 de dezembro de 2009 | N° 16201
MARTHA MEDEIROS
Carta para 2010
Seja bem-vindo, Ano-Novo. Que você seja tão bonito quanto o número que traz, redondo. Eu disse redondo, não gordo, tá? Tente ser um ano magro. Não estou sugerindo que nos prive de ter apetite, e sim que seja magro no sentido de leve, diáfano, onírico.
Que seja um ano para se passar de pés descalços, espírito aberto, consciência limpa e sorriso licencioso. Não pese.
Inevitável que algumas más notícias virão. Tsunamis acontecem, tragédias sísmicas, epidemias, e algum maluco há de provocar um crime chocante. Nem ouso pedir que você evite essas calamidades, mas que elas sejam raras, raríssimas, e que não atinjam nosso epicentro emocional. Mantenha os horrores afastados.
Por perto, apenas os amigos de boa conversa, os filmes que entrarão para a nossa lista dos 10 mais, os dias de praia sem uma única nuvem no céu e encontros amorosos, gloriosos e numerosos – de preferência com a mesma pessoa, aquela que nos fará acreditar em cartomantes: as cartomantes sempre dizem que o amor está para chegar.
Caso já tenha chegado, que não se vá.
Sendo um ano de eleição, nos inspire a votar com discernimento, sem nos deixar levar por promessas requentadas e sensacionalistas: que a gente saiba perceber quem são os homens e as mulheres que podem fazer diferença.
Na categoria das coisas não tão sérias, mas igualmente bem-vindas: 2010, entre para a história como o ano em que pichadores e depredadores do patrimônio público se darão conta do quanto são tolos, em que os prazos de validade dos produtos serão impressos num tamanho maior, em que os vinhos terão seus preços reduzidos nos restaurantes e em que a gente aprenderá a responder “não” quando alguém perguntar “posso ser sincero?”. Ensine a gente a dizer “não”, 2010. Para sobrar mais tempo pro sim.
E ensine também as pessoas a serem mais gentis no trânsito e fora dele, a não tomarem tanto medicamento por conta própria, a respeitarem seu corpo e sua mente, a não insistirem na infantilização de seus atos e a não se sentirem insultadas pela felicidade dos outros.
Se essa última solicitação for utópica demais, então que todo mundo aprenda a viver bem, a seu modo, que assim ninguém contaminará a humanidade com seu mau humor.
2010, seja um ano poético, vibrante, desencanado, musical, livre de vaidades, menos tecnológico, mais humano, solidário, natural, energético, romântico. Um ano hippie, ao melhor estilo paz e amor. Andamos saudosos.
Mas não tão bicho-grilo que nos faça esquecer que a prática de exercícios físicos é de primeira necessidade, que viajar é a melhor terapia que existe e que flores frescas em casa são um luxo que todos deveriam se permitir.
Então, 2010, em todos os sentidos (econômicos, sociais e afetivos): não seja sovina. Crise não é mais desculpa.
Uma excelente quarta-feira último dia úitl do ano. Aproveite pois 2009 se despede e vem ai a passos largos 2010
30 de dezembro de 2009 | N° 16201
NO CALDEIRÃO
Após sensação de 42ºC, calor diminui
Meteorologia alerta para temporais hoje, mas prevê tempo bom amanhã
Os gaúchos sofreram ontem com o caldeirão em que se transformou o Estado. O calorão, no entanto, deve dar uma trégua durante o feriadão de Ano-Novo.
Ontem, a alta temperatura com os elevados índices de umidade ampliou ainda mais o desconforto. Em Santa Maria, onde os termômetros marcaram 35°C, a sensação térmica alcançou 42°C. No município da Região Central, a umidade chegou a 67% durante a tarde.
Na Capital, a máxima foi de 34,6°C, mas a impressão era de muito mais: 40°C. Segundo a Central de Meteorologia, a máxima do dia no Estado ocorreu em Campo Bom, no Vale do Sinos, com 36,4°C.
Hoje, no entanto, o tempo já começa a mudar. Áreas de instabilidade ainda atuam sobre o Estado, provocando pancadas. Há risco de temporais, com chuva de mais de 60 milímetros entre o Oeste e o Noroeste. Na região de Garruchos, na fronteira com a Argentina, a Somar Meteorologia prevê um volume superior a 100 milímetros em apenas 12 horas, correspondendo a quase 80% da média de dezembro.
As rajadas de vento podem alcançar 70 km/h com possibilidade de queda de granizo. O aumento da quantidade de nuvens não deixa os termômetros subirem tanto quanto nos últimos dia. A máxima na Capital deverá chegar a 30°C.
Amanhã, na véspera de Ano-Novo, a instabilidade perde força, e a expectativa é de tempo firme durante a virada. A temperatura ficará entre 25°C e 30ºC na maior parte dos municípios.
A previsão é que o clima permaneça assim até o final do feriadão, no domingo.
30 de dezembro de 2009 | N° 16201
PAULO SANT’ANA
Maldita Mega Sena
Na verdade, eu e muita gente não queremos ganhar na Mega Sena da Virada de amanhã.
Pela simples razão de que não queremos nos mudar de Porto Alegre ou de qualquer lugar em que morem os outros.
Ganhar na Mega Sena da Virada significa perdermos a nossa identidade. Se eu ganhar R$ 100 milhões, não serei o mesmo, não serei eu mesmo, serei outro.
Dirá o imbecil da obviedade que basta ganhar os R$ 100 milhões e não contar para ninguém, manter em sigilo que foi o ganhador.
Como se fosse possível manter em segredo que foi o ganhador!
Mesmo que, ganhando, você não mude de cidade e não conte nada para ninguém, as pessoas vão começar a desconfiar: um cunhado seu compra uma fazenda, um filho vai morar numa mansão, os familiares começam a usar carros estrangeiros do ano, em seguida o segredo será desvendado.
Ninguém acredita, mas uma bolada dessas vira um inferno na vida de um ganhador.
Simplesmente porque não há nada mais difícil que esconder dinheiro. Esconder dinheiro torna-se impossível para qualquer pessoa.
E, cá para nós, o bom de ganhar R$ 100 milhões é espalhar para todos que ganhou.
E, espalhando, em que virará a sua casa? Será uma romaria interminável até sua casa, obrigatoriamente você terá de se mudar.
Mas não se mudar de casa, mudar-se de cidade. Nem de cidade chega, mudar-se de país.
Mas quem é que disse que se torna feliz quem muda de país? Pelo contrário, o que todos nós sonhamos é em sermos felizes no nosso país, na nossa cidade, na nossa rua, na nossa casa.
Ganhar na Mega Sena da Virada, portanto, é uma encrenca.
E Deus nos livre dessa encrenca.
Se eu perguntar para mil leitores ou leitoras desta coluna se eles querem ir morar em Nova York, 999 dirão que não querem, de jeito nenhum.
Mas, se ganhar na Mega Sena, terá de morar em Nova York. No Rio de Janeiro é que não poderá ser. No Rio de Janeiro, se escolher morar por lá, em toda a parte que for gritarão: “Aquele ali é o ganhador da Mega Sena da Virada!”.
Um inferno!
O pior é que obrigatoriamente quem ganha R$ 100 milhões é obrigado a contratar pelo menos 20 seguranças.
E aí passa a não dormir todas as noites com medo dos seguranças.
Uma outra das 500 desvantagens é que uma das atrações da vida, que é fazer amigos, fica inviável: qualquer pessoa que se aproximar de você será considerada interesseira.
E não existe tormento maior do que não poder fazer amigos.
Com esta coluna, encontrei a fórmula de consolar todas as pessoas que não vão ganhar a Mega Sena da Virada amanhã.
Ninguém vai acreditar, vão zombar de mim, mas perder na Mega Sena é muito melhor do que ganhar.
Até mesmo porque alguém que vá ganhar amanhã a bolada não tem a mínima ideia do que vai fazer (ou não fazer) com o dinheiro.
Que diabo de prêmio é este que não se sabe o que se vai fazer com ele!
30 de dezembro de 2009 | N° 16201
JOSÉ PEDRO GOULART
Saldão de fim de ano
Eu não tenho medo de voar, tenho medo de cair.
Quando se compra um iPod vem um alerta: não roube músicas. Mais ou menos como vir escrito no Chicabon: não lamba.
Os livros não são os medicamentos da alma, são as bulas.
Eu não acredito em pessimista vivo.
De todos os crimes da internet, o pior é o de diminuir a distância entre as pessoas.
O orgasmo é o assassino do desejo.
Crianças não deveriam saber de nada ruim – somente que os peixes nadam, que os passarinhos voam e que os avôs avoam.
Dormir e morrer é bem parecido. Só que na morte a gente não precisa escovar os dentes pela manhã.
A beleza não é necessariamente uma qualidade da civilização, a civilização é uma qualidade da beleza.
O pessimista é um otimista do fracasso.
Enganamos, fingimos e mentimos: cada um de nós é um projeto fictício de si mesmo.
Eis a razão dos homens se apaixonarem tanto pelas mulheres do cinema: na maioria das vezes são os homens que escrevem os roteiros.
A fé move montanhas, e também remove torres de edifícios em Nova York.
Quando ouço alguém dizer que não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje, eu penso: morre então.
A palavra é o pensamento subornado.
Feliz ano-novo.
P.S.: Só há duas coisas na vida que realmente importam: a sorte e o amor. O resto é bobagem.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
CARLOS HEITOR CONY
O novo livro
RIO DE JANEIRO - A Amazon vendeu, em todo o mundo, 9,5 milhões de kindles [no dia 14/12], dando a média de 110 aparelhinhos por segundo. A rival, a Barnes & Noble, que produz o Nook, teve problemas de distribuição e deve ter vendido um pouco menos. A soma das vendas dos livros eletrônicos, neste Natal, nos Estados Unidos, deve ter superado a venda dos impressos no mesmo período.
Surpresa? Acho que não. O mundo gira, a Lusitana roda, o Frederico trota e a informática está deixando a idade das cavernas e se apresenta ao mundo mais ou menos como a Bíblia de Gutenberg, depois da invenção dos tipos móveis que aposentaram, industrialmente falando, os manuscritos em pergaminho ou papiro em que os monges, na Antiguidade e ao longo da Idade Média, procuraram guardar e transmitir o patrimônio religioso, artístico e cultural da humanidade.
O fim do livro feito de papel e tinta é uma das perguntas mais recorrentes em todas as palestras e mesas-redondas de que participo. O mesmo ocorre com outros escritores.
Evidente que o livro impresso ainda continuará a transmitir história, ciência e meditação às novas gerações, mas o livro eletrônico fatalmente ocupará o vácuo deixado pelas editoras tradicionais. Um simples Kindle pode armazenar uma enciclopédia, a obra completa de Shakespeare ou Balzac.
Mesmo assim, o livro tal como hoje o conhecemos não morrerá de todo. Outro dia, mexendo nuns livros antigos, abri um volume de Tagore, dei com um belo poema do poeta indiano que ganhou o Nobel.
Havia uma pétala de flor marcando aquela página, uma flor vermelha que o tempo descorara, mas continuava flor. Ao ler aquele poema, eu colocara aquela pétala assinalando uma emoção que recriei com o mesmo encanto e admiração.
ELIANE CANTANHÊDE
Três Poderes
BRASÍLIA - O ano de 2009 vai embora, deixando um rastro de escândalos políticos em meio às incertezas embaladas pela crise econômica mundial. Nem o presidente do Senado (mais um!) escapou, misturando-se com empreguismo e atos secretos, na vizinhança do deputado do castelo e de parlamentares voadores, verbas complementares milionárias e notas fajutas.
Por isso, é curioso que 15% dos brasileiros considerem o Congresso ótimo ou bom, 39% avaliem que seja regular e só 40% cravem ruim ou péssimo, como apurou o Datafolha. Considerando-se as circunstâncias, poderia ter sido bem pior.
Também, pudera. Se o Congresso sempre foi a principal fonte de escândalos e o saco de pancadas, agora encontra concorrência no Executivo e no Judiciário. Ressalvados os motivos, que são bastante diferentes, nenhum dos Poderes passou ileso por 2009.
No Executivo, cassações dos governadores do Maranhão, da Paraíba e do Tocantins por crimes eleitorais, e o ano fechando com o governador de nada mais, nada menos que o Distrito Federal chafurdando em fitas e panetones.
No Judiciário, uma sequência de disputas, acusações, votações e habeas corpus capaz de deixar qualquer leigo tonto e sem fôlego, tentando entender, por exemplo, o presidente do Supremo Tribunal Federal correndo, fora da rotina e fora do expediente, para livrar ora um banqueiro esquisitão, ora um médico aloprado, tão diferentes entre eles, mas tão iguais no poder, tão parecidos na riqueza, tão perdulários ao contratar advogados.
Se 60% dos cidadãos não classificam o Congresso de 2009 como ruim ou péssimo, provavelmente também não acham nada demais o que anda ocorrendo nos outros Poderes. De duas, uma: ou não tomam conhecimento ou começam a desconfiar de que tudo não passa de guerrinha política, cansaram e acham que é assim mesmo e nunca vai mudar. O que é pior?
elianec@uol.com.br
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Zelig, o zelador
SÃO PAULO - Enchentes, bairros alagados, trânsito, ruas repletas de lixo, redução da merenda escolar, aumento do IPTU. Não causa surpresa, a quem acompanha a vida da cidade, que a popularidade do prefeito Gilberto Kassab tenha caído.
O tombo foi até pequeno. O Datafolha registrou que a aprovação (bom/ótimo) ao governo recuou de 45%, em março, para 39% em dezembro; a reprovação (ruim/péssimo) passou de 23% para 27%.
Fica, como cartão postal da gestão Kassab neste final de ano, a imagem do bairro pobre submerso, as pessoas lutando na água infecta para salvar o resto dos pertences de uma vida. A prefeitura passou dias sem tomar nenhuma atitude, custou a perceber o que estava em jogo.
O drama do Jardim Pantanal talvez simbolize, como nenhum outro, não apenas o descaso com os mais pobres, mas o desmanche daquele que parecia ser aos olhos do eleitor, pobre ou rico, o principal atributo do prefeito: o de ser uma espécie de "zelador" que cuidaria da cidade.
A ideia, explorada na campanha eleitoral, de que Kassab, uma vez submetido ao teste do poder, já havia se mostrado capaz de zelar pelas pessoas e de fazer as coisas funcionar, foi pelos ares (ou pelo rio).
Cria de José Serra, o prefeito demo-tucano nunca esteve associado à imagem de um inovador, um formulador, um estrategista, uma figura de visão histórica. Pelo contrário, adaptou-se a um perfil deliberadamente modesto, de líder menor -zelador das coisas práticas.
A obediência ao padrinho funcionava como selo de garantia do boneco de vento (lembre-se do Kassabão inflável) que iria ser reconduzido à administração, desta vez pelo voto.
Egresso do malufismo nos anos 90, fã declarado de Lula na campanha de 2008, marionete de Serra, Kassab tem sido um Zelig da política. Sua plataforma eleitoral era uma bricolagem pragmática de coisas herdadas, a começar pelo CEU de Marta Suplicy. Neste ano, o prefeito enfim mostrou a sua cara. Alguém precisa chamar o síndico.
29 de dezembro de 2009 | N° 16200
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
Para não esquecer
Recebo de presente uma foto do Château d’Eau e com ela uma torrente de lembranças. Para quem não sabe o que esse nome francês significa – a tradução literal é Castelo d’Água – esclareço que designa o principal dos símbolos de Cachoeira.
Nova York tem o Empire State Building, Paris tem a Tour Eiffel e minha terra tem o Château d’Eau. Para descrevê-lo em poucas linhas, direi que é outra torre, no centro do que é uma das mais belas esplanadas urbanas do Rio Grande do Sul. Não sei se existe algo sequer parecido em qualquer outra cidade gaúcha, para ficar apenas dentro de nossos limites.
Em síntese, é um monumento que se ergue sobranceiro no âmago de três praças – uma delas a sua própria. É cercado por altas palmeiras em um primeiro círculo. Logo, mais à distância, pela Catedral, pela velha Prefeitura, que é de 1864, pelo antigo Fórum e pelas duas outras praças, uma delas contendo o busto em bronze de meu pai.
Há algo de majestoso em toda a construção, a começar pelo lago que a cerca, pelas quatro pontes que o atravessam, pelas estátuas das Musas dispostas ao seu redor e pela do deus Mercúrio, bem ao alto, erguendo seu tridente para o infinito.
Algumas de minhas mais inesquecíveis recordações da infância confluem para o Château d’Eau. Aqui estou eu com meses lançando um olhar sonhador quem sabe para os peixes, que em uma época eram sonolentas carpas, que em outra se travestiram de vermelho e de dourado. Aqui estou eu com pessoas que há séculos já me disseram adeus.
Aqui estou eu com meus filhos, talvez tentando explicar-lhes o que aquela torre representava para mim.
E há este instantâneo da adolescência, em que apareço junto a uma namorada. Há algo de levemente solene na cena. Minha amada senta-se na grama e a cerca seu vestido bordado. Há em seu rosto um traço de tênue apreensão. Será um rompimento? Será uma simples declaração de amor?
Não sei dizer. Sei tudo sobre estas praças e os caprichosos desenhos de seus gramados. Sei tudo sobre a Prefeitura, personagem de um conto meu. Sei tudo sobre a estátua de meu pai, sobre o Fórum, sobre o prédio da escola onde antes havia um teatro ancestral que desabou. Sei tudo sobre a Catedral, e os atentados que se cometeram contra a riqueza de seu interior.
Só nada sei sobre o instantâneo do gramado. Vai ver que a cena era apenas como um raio em céu sereno.
Uma linda terça-feira para vc. Esta que é a última de 2009. Aproveite
29 de dezembro de 2009 | N° 16200
CLÁUDIO MORENO
O pai e o filho
Se pudesse escolher, Ulisses não teria ido a Troia com o exército grego. Partir para a Ásia, bem agora que Zeus tinha abençoado seu pequeno reino com um ano de fartura?
Os rebanhos da ilha tinham se multiplicado, as videiras prometiam vinho abundante e os figos estavam mais doces do que nunca - e Penélope, sua rainha, tinha lhe dado um filho, o pequeno Telêmaco, que viera encher os seus dias com uma alegria e uma ternura até então desconhecidas. Ulisses sentiu-se o mais feliz dos mortais, mas sabia que os ventos da guerra, que agitavam a Grécia inteira, logo viriam alcançá-lo.
Por isso, quando vieram buscá-lo, resolveu resistir; mesmo que seu renome ficasse abalado, não ia sair de Ítaca. Um oráculo havia predito que a luta ia durar muitos anos, e não havia compromisso de honra que o fizesse abrir mão de ver seu filho crescer, de lhe ensinar tudo o que um menino precisa aprender para se tornar um homem – assim como Laertes, seu pai, havia feito com ele.
A saída era fingir-se de louco: vestiu roupas esfarrapadas, atrelou ao arado um boi e um jumento, e se pôs a lavrar o campo com aquela junta esquisita, enchendo os sulcos com sal, em vez de semente.
Ao vê-lo naquele estado, os emissários já se dispunham a voltar ao navio quando um deles, desconfiando da farsa, tirou o bebê dos braços da mãe e o colocou no solo, a poucos metros do arado. Como imaginava, Ulisses pôs toda sua força nas rédeas e conseguiu desviar os animais do caminho do bebê - e assim, por amor ao menino, para protegê-lo, traiu seu disfarce, reconheceu sua desonra e foi obrigado a cumprir seu juramento de lealdade para com os outros chefes.
Perdeu dez longos anos em Troia, e mais outros dez no caminho de volta - mas em nenhum momento, nesses vinte anos de ausência, Telêmaco ficou sem pai; ao contrário, cresceu com orgulho de ser o filho de um homem que o amava tanto que, por ele, tinha se disposto a enfrentar a morte.
Esta história ancestral de um pai que procura o filho – e vice-versa – vem tocar uma corda muito sensível na alma masculina, e não admira que a maior parte dos homens se posicionou, no caso do menino americano, a favor do pai e do direito que ele tem de criar o pequeno Sean.
É mais do que humano o desespero da avó brasileira, que tem no neto a lembrança da filha que perdeu – mas, quando a tristeza diminuir, alguém deve lembrar-lhe que a verdadeira, a boa mãe da história de Salomão foi aquela que, para salvar o seu filho, estava disposta a deixá-lo ir embora.
Essa é a dinâmica da vida: o médico corta o cordão umbilical para que o bebê possa viver, e aquilo que ele faz com o corpo, o pai vai fazer com o espírito.
E que a vovó não se preocupe: Sean, a quem ela deu tanto amor, não vai deixar de voltar para abraçá-la com aquele sorriso em que talvez ela enxergue, mais uma vez, o sorriso da filha querida. Ele continua seu neto - mas, agora, como um homenzinho.
29 de dezembro de 2009 | N° 16200
PAULO SANT’ANA
Luminosa ideia
Enfim, uma grande ideia para resolver um grande problema.
Como se sabia, as grandes favelas cariocas estavam e estão dominadas por traficantes.
A polícia não punha os pés lá. De repente, o governador Sérgio Cabral teve a ideia de ocupar as favelas com a polícia.
O caos dava-se exatamente pelo Estado virar as costas às favelas e deixar que elas se organizassem (ou se desorganizassem) por si próprias.
Luminosa ideia esta de criar Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) para tomar de assalto os redutos dos traficantes nas favelas.
Por essa medida, instala-se permanentemente uma unidade policial vasta dentro da favela e vai aos poucos reduzindo-se o tráfico de entorpecentes naquele território.
Evidentemente que são necessários muitos recursos humanos e materiais para implantar o plano.
No entanto, já vão lá para sete grandes favelas as ocupadas pela polícia. E os resultados são os mais auspiciosos possíveis.
Um dia após o Natal, os policiais do Bope ocuparam o Morro dos Cabritos e a Ladeira Tabajara, em Copacabana.
Oitenta policiais ocuparam as duas favelas. Havia três dias, os PMs aguardavam nos acessos aos dois morros o momento exato de início da ocupação para evitar uma reação do tráfico. No sábado, por volta das 7h, finalmente, eles começaram a ocupação.
Não houve resistência à chegada dos policiais. Não foram ouvidos tiros e a situação era de aparente tranquilidade. Logo em seguida, eram vistos moradores descendo o morro com suas cadeiras de praia.
Já quando, há semanas, a polícia ocupou os morros de Pavão-Pavãozinho e do Cantagalo, Copacabana e Ipanema, foi desencadeada forte reação por parte de traficantes, espalhando-se ações terroristas pelos dois bairros, um ônibus foi incendiado e outro atingido por uma bomba artesanal. Por ordem de traficantes, lojas nas imediações de Pavão-Pavãozinho foram fechadas.
Mesmo com a reação, a chegada da polícia às favelas foi comemorada pelos moradores.
A ocupação da Unidade de Polícia Pacificadora no alto do Cantagalo teve a presença pessoal do governador Sérgio Cabral, num ambiente de solenidade, a que não compareceram, no entanto, as entidades comunitárias: a polícia descobriu que tinham sido ameaçados de morte pelos traficantes todos os que comparecessem ao evento ou fossem favoráveis à implantação da UPP.
Embora ainda encontre um pouco de resistência do tráfico na Favela Cidade de Deus, onde a UPP foi instalada há um ano, não circulam mais por lá traficantes armados, e quase toda semana a polícia apreende drogas e prende suspeitos.
E nas outras favelas em que se instalaram as Unidades de Polícia Pacificadora é experimentado um período de muita tranquilidade e serena paz.
Na favela Dona Marta, os índices de violência despencaram. Lá que foi a primeira UPP implantada.
No Batan, em Realengo, a UPP expulsou milicianos. E, nos morros de Chapéu Mangueira e Babilônia, pôs-se fim a uma onda de invasões e arrastões que infernizava a vida do bairro Leme.
Isso demonstra que, quando as autoridades têm energia e determinação ao aplicar medidas criativas contra o tráfico e a violência, os resultados podem ser os melhores possíveis.
O esforço é gigantesco, mas surge a luz no fim do túnel do abandono e violências das favelas cariocas.
29 de dezembro de 2009 | N° 16200
MOACYR SCLIAR
A agulha como símbolo
Como o Sant’Ana tem comentado, o ano está terminando sob o signo dessa estranha e perturbadora história das agulhas. Primeiro foi o menino da Bahia, e depois o menino do Maranhão, e mais adiante uma gaúcha de 42 anos que tem 12 agulhas no corpo, resultado da brutalidade de um ex-companheiro. Mais: quando se entra em sites médicos, verifica-se que casos semelhantes não são raros.
Encontramos o relato de uma mulher chinesa em cujo corpo foram descobertas – por acaso, durante um exame radiológico – várias agulhas. Resultado, supõe-se, da frustração dos avós com o nascimento da menina: na China, como se sabe, casais podem, em geral, ter um filho só, e torcem para que seja do sexo masculino.
No Hospital Geral de Teerã, foi recentemente operada uma mulher de 36 anos que tinha uma agulha no coração; de novo, resultado de violência marital. Os autores deste último artigo encontraram na literatura quase 200 casos de lesões cardíacas causadas por agulhas; e isto, obviamente, é apenas o topo do iceberg.
A agulha de costurar é um objeto milenar. Serve até de metáfora no Evangelho: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus” ( o “camelo”, a propósito, resulta de um erro de tradução da palavra grega “kámilos”, que significa corda grossa). Muito cedo a agulha foi incorporada à cultura, seja por sua utilidade, seja por seu aspecto simbólico.
Agulhas passaram a ser instrumentos de um tratamento, a acupuntura, mas também entraram em procedimentos mágicos, como é o caso do rito vodu, que veio da África e é praticado no Haiti e em outros países: trata-se de enfiar agulhas num boneco que representa a pessoa a quem se quer prejudicar.
Daí a usar seres humanos vai apenas um passo, facilitado pelo fato de que, diferente do alfinete, a agulha não tem cabeça (nem, a propósito, as pessoas que praticam esse bárbaro rito).
É muito fácil enfiar agulhas no corpo de alguém; sumirão (lembrem-se da expressão “agulha no palheiro”) e praticamente não deixarão marcas externas. Além disso, as agulhas, por sua forma, lembram minúsculos punhais, o que para gente agressiva deve ser um apelo. Sem falar na simbologia fálica da penetração.
Mas a violência desgosta a muitas pessoas, inclusive praticantes do vodu. Por isso, surgiu na internet um site que se propõe a realizar o rito sem usar agulhas (ou alfinetes, ou bonecos). A pessoa inscreve-se ali e fornece o nome de sua potencial vítima.
Esta receberá um e-mail do site avisando que foi amaldiçoada; para saber em que consiste a maldição, terá de clicar num link, e aí verá uma efígie que supostamente a representa – crivada de agulhas.
Se o progresso não acaba com a superstição, pelo menos a torna menos perigosa. Sinal de que, apesar de tudo, o mundo melhora, não é mesmo? Feliz 2010.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
O que entristece o meu coração...
Entristece o meu coração...
perceber que as pessoas
perdem a oportunidade de serem felizes.
Entristece o meu coração...
perceber que para ser aceitos pelas pessoas
temos que ter e não importa o ser
Os anos passam, e essas pessoas
esqueceram do mais importante :
Viver e ser feliz .
Às vezes, para ser feliz,
não precisamos de tanto TER.
Podemos nos dar conta que o
mais importante na vida é SER.
Esse SER, tão esquecido, muitas vezes
não é difícil de se realizar.
As pessoas precisam parar de correr atrás do TER
e começar a correr atrás do SER:
Ser amigo...
Ser amado...
Ser gente...
Ser humilde...
e deixar pra trás esse roupante, esse orgulho
e essa vaidade que destrói toda uma relação
de admiração e respeito
Tenho certeza de que, quando SOMOS,
somos muito mais felizes do que quando TEMOS.
O SER leva uma vida toda para se conseguir,
e o TER, muitas vezes conseguimos logo.
Só que o SER não acaba e nem se perde,
mas o TER pode terminar inesperadamente.
O SER, uma vez conseguido, é eterno
e o TER é passageiro e,
mesmo que dure muito tempo,
pode não trazer a FELICIDADE.
E aí vem o vazio da alma.
Entristece o meu coração...
perceber que os valores éticos e morais
que um dia foram transmitidos deixaram de ter importância.
Nesta sociedade passamos a conviver com algo
que fere os nossos princípios onde se mercadoriza amor,
relações afetivas, o sentimento, a vida,
até a justiça, a igualdade, o sonho e a utopia.
Tentemos SER de verdade e não fiquemos
escondidos atrás de máscaras conforme as situações.
Sejamos verdadeiros e justos com aqueles
que nos ama de verdade, somente assim
poderemos sentir o verdadeiro sabor de
uma felicidade sem preço, sem hipocrisia.
Fiquem em paz e busquem essa paz
em seus corações com justiça e amor,
com perdão e humildade.
Sejamos verdadeiramente felizes
Desculpe o dasabafo, mas alivia o meu coração
e me dá forças para continuar a caminhar
por este caminho que eu escolhi
e acredito que me leva em direção
a luz que todos nós buscamos.
A força divina me acompanha e me direciona
a cada dia e mostra o caminho a seguir com amor,
com respeito, com dignidade e com compaixão
e me faz seguir em frente mesmo
com o coração entristecido.
O bálsamo está em acreditar não somente
no amor verdadeiro independente de raça,
credo e condição social, mas na essência
que cada um traz, na força maior que nos irmana
como filhos de um Pai amoroso e justo.
É isto que eu busco para minha vida,
ser cada vez melhor, para um mundo melhor.
Sejamos felizes!!!!!!
Um feliz 2010!
Sonhe
Um dia uma criança chegou diante de um pensador e perguntou-lhe:
”Que tamanho tem o universo?
”Acariciando a cabeça da criança,ele olhou para o infinito e respondeu:
”O universo tem o tamanho do seu mundo.”Perturbada,ela novamente indagou:”Que tamanho tem meu mundo?
”O pensador respondeu:
”Tem o tamanho dos seus sonhos.”
Se seus sonhos são pequenos, sua visão será pequena, suas metas serão limitadas, seus alvos serão diminutos, sua estrada será estreita, sua capacidade de suportar as tormentas será frágil.
Os sonhos regam a existência com sentido.
Se seus sonhos são frágeis, sua comida não terá sabor, suas primaveras não terão flores, suas manhãs não terão orvalho, sua emoção não terá romances.
A presença dos sonhos transforma os miseráveis em reis, faz dos idosos, jovens, e a ausência deles transforma milionários em mendigos faz dos jovens idosos.
Os sonhos trazem saúde para a emoção, equipam o frágil para ser autor da sua história,
fazem os tímidos terem golpes de ousadia e os derrotados serem construtores de oportunidades.
Sonhe!"
Augusto Cury
RUY CASTRO
Vale das bolinhas
RIO DE JANEIRO - Brittany Murphy, a atriz americana encontrada morta na semana passada em sua casa, em Los Angeles, aparentemente de um ataque cardíaco, tinha 32 anos.
Muito jovem para morrer assim, e sem qualquer aviso prévio. Mas, para nenhuma surpresa deste departamento, encontraram em seu quarto um vasto suprimento de analgésicos, ansiolíticos, antidepressivos, soníferos e antibióticos.
Quando se fala em vasto suprimento, no caso de artistas do cinema ou da música popular, isso significa uma quantidade quase inconcebível para os amadores que já não conseguem passar sem o seu Lexotanzinho diário.
São dezenas, centenas de caixas -milhares de comprimidos, conseguidos através de receitas em nome próprio, no nome da mãe, da amiga, da empregada ou de quem quer que seja. Afinal, são remédios "controlados".
A polícia de Los Angeles apressou-se em decretar que a morte de Brittany se deu por "causas naturais". Ou seja, não foi acidente, assassinato ou suicídio, e também não se encontraram drogas ilegais. Mas até que ponto pode-se considerar "natural" uma morte provocada pelo massacre químico diário do organismo durante anos?
Por algum motivo, as pessoas resistem a admitir que muitos desses remédios pesadíssimos, que os profissionais acham mais fácil prescrever do que retirar, acabam estabelecendo dependência e, pelo renitente bombardeio, podem levar à morte por simples cansaço precoce do organismo.
Não deve ser por acaso que Carmen Miranda (morta aos 46 anos, em 1955), Marilyn Monroe (aos 36, em 1962), Judy Garland (aos 47, em 1969), Elvis Presley (aos 42, em 1977), Michael Jackson (aos 50, em junho último) e, agora, Brittany Murphy, entre muitos outros, tivessem em comum um armário cheio de comprimidos.
MOACYR SCLIAR
Resoluções de Ano Novo
E também prometi à minha mulher que teríamos um filho. Ser mãe era o sonho dela. Mas não era o meu
A Microsoft fez uma página com uma planilha para manter as resoluções de Ano Novo.
Folha Informática
"PREZADO AMIGO ladrão: em primeiro lugar, quero cumprimentar-lhe pela esperteza. Você entrou em minha casa no momento certo. Vivo sozinho e raramente saio, mas aquela era uma noite especial, como você já verá, e assim decidi jantar num restaurante. Lá passei algumas horas: o suficiente para que você arrombasse a porta e fizesse uma limpa geral.
Entrarei no Ano Novo com um prejuízo que não é pequeno. Tudo bem, é a sua profissão, não reclamo.
Providenciarei novas roupas, novos eletrodomésticos, um novo cofre para substituir aquele que você carregou e que felizmente estava vazio. Isso não me incomoda, amigo ladrão. O que me aborrece foi você ter levado meu laptop.
Este laptop, como você certamente notará, se se der ao trabalho de ligá-lo, é novo e não continha quase nada. Só uma planilha. Que você não entenderá, mas que para mim tinha uma importância fundamental.
Nesta planilha estavam as resoluções para o Ano Novo que se aproxima. Agora: por que esta planilha era tão importante para mim? Por uma razão muito simples, amigo ladrão: como muitos, sempre prometi a mim mesmo mudar de vida no novo ano.
E, como muitos, eu não cumpria essas promessas -que, apresso-me a dizer, nada tinham de extraordinário. Eu prometia, por exemplo, deixar de fumar. Prometia fazer exercício físico. Prometia aderir a uma dieta que me fizesse perder o excesso de peso. Prometia deixar de jogar.
Durante anos fiz essas promessas à minha ex-mulher. E também prometi que teríamos um filho. Ser mãe era o sonho dela. Mas não era o meu sonho, devo dizer. Sou empregado, ganho pouco, e queria melhorar de vida antes que constituíssemos uma família.
Ela não dizia nada, sofria em silêncio, mas seguramente deve ter chegado à conclusão de que eu não tinha jeito mesmo. No ano passado, depois da festa de Ano Novo, acordei com a cabeça doendo e sozinho em casa. Ela tinha ido embora. Deixara um bilhete, declarando-se cansada das promessas não cumpridas.
Sofri muito por causa disso. E fui obrigado a reconhecer que tinha de mudar. Mudar em relação às coisas que a aborreciam, o cigarro, o sedentarismo, a obesidade, o jogo. Foi aí que li sobre a planilha das resoluções de Ano Novo. E aquilo renovou minhas esperanças.
Sempre confiei na tecnologia, na informática. Eu teria minha lista no computador, que seria programado para me dirigir mensagens de alerta: "Você ainda está fumando!" , "Você ainda não se matriculou na academia!" e assim por diante. Preenchi a planilha e fiquei tão feliz que saí para comemorar, mesmo sozinho. Sorte sua.
Agora, não existe mais planilha alguma. Você levou meu computador e, com ele, minha motivação. Mas pelo menos atenda a um especial pedido.
Faça uma cópia dessa planilha, amigo ladrão, e mande-a à minha mulher (na própria planilha estão o e-mail e o endereço dela). Dê o seu testemunho de que eu estava a ponto de mudar, pronto para recomeçar a vida com ela.
Com o que eu não apenas lhe perdoarei como ficarei muito agradecido. PS: Feliz Ano Novo."
MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
28 de dezembro de 2009 | N° 16199
ABALO NA SERRA
Terra volta a tremer em Caxias do Sul
Tremores de terra voltaram a ser sentidos entre a noite de sexta-feira e a madrugada de sábado em Caxias do Sul.
Moradores do bairro Jardim América acordaram assustados com estrondos e portas trepidando entre 22h e 6h. Nenhum estrago foi registrado. Conforme um especialista, o fenômeno, a exemplo do que ocorreu em 2008 na zona norte da cidade, é normal.
Morador da Rua México, o tintureiro Gilmar Biegelmeyer, 48 anos, conta que acordou por volta das 23h com estrondos. Ele e a mulher, Margarete, 45 anos, saíram para a rua, assim como a maioria dos vizinhos. No início, Biegelmeyer chegou a pensar que fosse um ladrão arrombando a casa e saiu com um pedaço de madeira na mão como arma. Por volta das 5h, a família novamente voltou para a rua por causa de estrondos.
– Foi apavorante. Nunca vi coisa igual. Não sei se foi terremoto, mas alguma coisa aconteceu – relata.
Os bombeiros foram ao bairro ouvir os moradores. O caso será investigado pela Defesa Civil e prefeitura.
Em 10 de novembro de 2008, moradores de diversos bairros de Caxias foram surpreendidos por tremores. Em outras ocasiões, entre 2005 e 2007, em 1984 e em 1979, também foram registrados relatos de abalos de terra na cidade. Conforme o geólogo e diretor-geral da Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma), Nerio Jorge Susin, não há motivo para preocupação:
– O pessoal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que esteve em Caxias em anos anteriores, constatou que não há uma origem específica para isso. O que existe é o movimento da crosta da Terra, que tem reflexos na superfície. São abalos normais, que ocorreram e que vão ocorrer novamente. Mas não dá para prever quando.
Conforme ele, os caxienses não precisam temer estragos maiores:
– Os moradores vão se assustar. Mas não vai ocorrer nada de diferente do que há um ano, ou do que ocorreu agora. Estamos numa região alta, com grande quantidade de rochas no subsolo e com espessura do solo não tão grande, o que faz com que os tremores sejam sentidos.
Uma gostosa semana para você. Aproveite esta que é a última de 2009
28 de dezembro de 2009 | N° 16199
KLEDIR RAMIL
Autobiografia não autorizada
Resolvi escrever minha autobiografia. Como há passagens na minha vida que eu só lembro de ouvir falar, decidi que seria uma autobiografia não autorizada. Não posso assinar embaixo de todas as histórias que contam a meu respeito. A maioria deve ser mentira. Principalmente as histórias dos anos 70, década que consegui atravessar não me pergunte como.
Pensei em começar contando a noite em que dormi com três mulheres. Foi no berçário da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, onde dormi com duas recém-nascidas e uma enfermeira. Dessa noite inesquecível, ficaram alguns conceitos que carrego pela vida inteira.
O primeiro deles é que as mulheres gritam mais que os homens. O segundo, que as enfermeiras são pessoas carinhosas. Lembro também de ter enxergado seios, mas não tenho certeza se eram de verdade ou, mal começando a viver, eu já estava sonhando.
A vida foi avançando e me transformei em um sonhador compulsivo, pois no mundo da imaginação eu acumulava conquistas que a realidade não me permitia. Lembro que fui astronauta.
Andei pelas galáxias sem me preocupar com detalhes técnicos como foguetes e tubos de oxigênio. Fui Gary Cooper, fui Johnny Weissmuller, fui Frank Sinatra e fui até meu próprio pai, com seu bigode, óculos Ray-Ban e uma técnica refinada na condução do volante da Ford F100.
Fui um amante latino, desses que enlouquecem as mulheres e, como a vida é uma via de mão dupla, uma delas acabou desequilibrando minha saúde mental. Aprendi a reciclar meus delírios e comecei a escrever, com o ouvido interno, canções de amor em que o nome da musa Greta Garbo aparecia subentendido nas entrelinhas musicais.
Peraí, acho que avancei rápido demais para quem pretende escrever um livro de 600 páginas. Nem contei o batizado, os primeiros passos e minha primeira palavra: hipérbole. Isso mesmo, uma proparoxítona.
Assustados com o fenômeno, com o que poderia ser uma criança extraordinária, talvez um gênio da matemática ou a nova encarnação de um Lama Tibetano, meus pais chamaram o Dr. Chostnoy.
Na falta de um instrumento adequado, o pediatra enfiou um termômetro no meu sovaco para tentar medir o QI. O resultado mostrou 36 e meio, o que deixou uma decepção no ar e evoluiu para uma depressão familiar coletiva. Começaram a me tratar como uma criança estranha, o que não estava muito longe da realidade. (Continua)
28 de dezembro de 2009 | N° 16199
PAULO SANT’ANA
Outro caso com agulhas
Não cessa o sacrifício do menino M.S.A., de dois anos e sete meses apenas, na Bahia.
Ele já foi alvo de duas cirurgias, que lhe retiraram cerca de 20 agulhas do corpo.
Na segunda cirurgia, feita há dias, foram retiradas 14 agulhas dos intestinos, da bexiga e do fígado.
E ainda há mais agulhas para serem retiradas de outras partes mais delicadas de seu corpo.
Além de ser submetido a mais de 40 torturas, cada uma das agulhas infiltradas em seu corpo significava uma sessão de crueldade, agora o menino se submete a cirurgias várias para retirada das agulhas, o que leva ao raciocínio de que essa criança é pequena demais para tantas intervenções.
Não é surpresa, portanto, que, apesar de duas cirurgias bem-sucedidas, o estado de saúde do garoto ainda seja considerado grave.
Eu insisto neste assunto porque não posso ignorar o sofrimento dessa criança. Inocente, indefesa, viu cair sobre si pesadamente a mão do destino, que a submeteu a incontáveis torturas, cujas consequências persistem, apesar de ter sido libertada das mãos assassinas de seu padrasto, que durante meses a fio cravou as agulhas no corpinho da criança.
Que carnificina! Como pode um corpinho frágil suportar tantas agressões, as agulhas e agora as cirurgias?
Pensava-se que este caso fosse solitário e até se podia imaginar que fosse inédito.
Qual nada! No Maranhão, foi preso na quarta-feira passada o autônomo Francisco Coelho Campos, na localidade de São Vicente Ferrer, como principal suspeito de ter infiltrado sete agulhas no corpo de seu filhinho de apenas dois anos de idade, a mesma idade do menino baiano que foi torturado da mesma maneira.
O suspeito é adepto da magia negra, da mesma forma que se apresentou, sob certa hipótese, o caso baiano.
Além das sete perfurações e incisões das agulhas, o ritual de magia negra a que o menino foi submetido compreendeu também as fraturas de cinco costelas, um braço e uma clavícula do garoto, o que deve ter causado na criancinha dores indizíveis.
Mesmo familiares do pai da criança, agora preso sob a acusação dos crimes, admitem que ele é adepto da magia negra. Notando-se, assim, que criminosos cruentos tentam se passar por religiosos.
Mas que religião é essa que enfia agulhas no corpo de uma criança. Não satisfeita, ainda provoca fraturas em cinco costelas, no braço e na clavícula de um menininho? Que religião é essa?
Como se fosse permitido a qualquer religião submeter pessoas a suplício, quando o fulcro central de uma religião deve ser o bem, jamais a agressão a qualquer adulto, quanto mais a uma criança de dois anos.
Em ambos os casos, o da Bahia e o do Maranhão, os dois acusados são pessoas analfabetas, rudes, distantes da civilização, mas isso não os exime de culpa.
Mas não basta a ignorância sobre o ato para compreendê-los. E a maldade? Não há ignorância que possa, na mente de uma pessoa, exceder ao escrúpulo sobre a maldade. Torturar alguém é fato que não pode justificar qualquer prática satânica, isto é crime puro, sem qualquer atenuante.
São dois fatos que revelam com extrema crueza o grau de falta de educação e civilização, a mais completa, em que vegetam populações brasileiras.
Mas isso não autoriza nem de longe a alguém martirizar uma criança.
28 de dezembro de 2009 | N° 16199
L. F. VERISSIMO
2009 tchau
Opai do ano foi o presidente do Paraguai e ex-bispo Fernando Lugo, que reconheceu a paternidade de todos os filhos que disseram que eram seus, inclusive alguns mais velhos do que ele.
As voltas do ano: Ronaldo ao Corinthians, Adriano ao Flamengo e Collor ao noticiário.
Madonna esteve no Brasil e namorou um Jesus. A relação, imagina-se, foi ainda mais ardente pela sugestão de incesto.
Entreouvido na Itália:
– Atiraram o Duomo de Milão no Berlusconi.
– Oba!
– Era uma miniatura.
– Ah...
Moda do ano: meias elásticas “DEM”, para carregar propina.
Cineasta do ano: Durval Barbosa.
Mãe do ano: o governo americano, que deu bilhões para grandes bancos americanos não quebrarem, com a recomendação de não gastarem tudo em gratificações de fim de ano.
Mão do ano: a do Henry Thierry.
Ivete Sangalo engravidou. Fernando Lugo apressou-se a declarar que não esteve nem perto da cantora.
Barack Obama tomou posse como o primeiro presidente quênio-havaio-americano dos Estados Unidos, e provavelmente o último.
Barack Obama recebeu o prêmio Nobel da paz numa cerimônia em Oslo. Não é verdade que tenha sido revistado na entrada porque podia estar armado.
O campeão de golfe Tiger Woods revelou-se um sexólatra compulsivo. Piores serão as piadas sobre tacos e buracos que vêm aí.
Buuuu do ano: para os alunos que hostilizaram a menina Geisy numa universidade paulista só porque estava com um vestido curto, para os torcedores do Grêmio que hostilizaram jogadores do seu time por terem se esforçado contra o Flamengo, para o Piquet que simulou um acidente a pedido no Grand Prix de Cingapura, para o Ahmadinejad e para a gripe suína.
Fernando Lugo, explicando seus filhos, disse que tudo se deve à restrição da sua igreja ao uso da camisinha.
domingo, 27 de dezembro de 2009
IGOR GIELOW
Nós contra eles
BRASÍLIA - Com 2009 moribundo, uma avalanche de análises da era Lula é previsível. O problema é que toda essa avaliação será contaminada pela campanha, na qual Lula fará de tudo para eleger Dilma Rousseff, sua Medvedev de saias. E a real qualificação dos acertos e erros dos oito anos do petista será embotada, de lado a lado, pela aposta no "nós contra eles".
É do jogo. Mas é notável como esse clima ácido que se anuncia carrega também uma das marcas indeléveis desses oito anos: o estímulo à cultura divisionista da sociedade.
Curiosamente, Lula foi eleito com um discurso conciliador ("Carta ao Povo Brasileiro", José Alencar na vice). No poder, a acomodação pragmática (manutenção da política econômica) e a dissolução moral (mensalão e alianças com os Judas de ocasião) reforçaram a ideia de um grande pacto.
Mas tudo isso é permeado pela virulência ressentida contra "os outros". Amparado pela enorme popularidade, Lula levou sua logorreia a níveis inéditos. O palavrão no palanque não é detalhe, é ato falho traindo o ethos do poder lulista.
Com a oposição catatônica, é de se esperar um novo patamar de agressividade a fim de liquidar o jogo rapidamente. Caso haja reação, será no mesmo nível. Em qualquer cenário, não será bonito de ver.
O fim do ano traz à tona uma opressora atmosfera de felicidade obrigatória. Aqueles de sorriso menos fácil ficam então acuados, estigmatizados pelo crime de não compartilhar o otimismo compulsório dos dias -tão ao gosto vigente.
Deixo para eles, e também para todos os outros, meu desejo de que possam emular o espírito do Natal de 1914 em algum ponto perdido da Europa.
Que saiam, por um momento que seja, das trincheiras da frente ocidental que todos carregamos em nós. E que, ao longo de 2010, possam celebrar diariamente a lembrança desse instante.
igor.gielow@uol.com.br
CARLOS HEITOR CONY
Homens & mulheres
RIO DE JANEIRO - Talvez seja um machismo light que tenho encruado dentro de minha formação ou desinformação: não aprecio a mudança que a igreja introduziu no cântico do "Gloria", alterando a expressão "glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade".
Afinal, o canto litúrgico em latim repete a saudação dos anjos que anunciaram a Boa-Nova aos pastores de Belém e que está até hoje no Evangelho de Lucas: "homens de boa vontade".
A mudança de certas tradições alterou a bela expressão por uma que tenta incluir as mulheres na saudação dos anjos. É um tipo de modernismo bobo, pois a expressão "Jesus salvador do homens" não exclui as mulheres. Nem a cantata de J. S. Bach, "Jesus, alegria dos homens", pode ser acusada de machista porque não cita as mulheres.
Na onda, os presidentes da República agora não se referem aos brasileiros, mas aos brasileiros e brasileiras. Os parlamentares falam em senador e senadora, deputado e deputada, vereador e vereadora, quando a função é uma só e independe de sexo.
A nobre exceção ficou por conta das poetas, que deixaram de ser poetisas e ficaram poetas mesmo, pois a função de poetar é uma só e independe do sexo para se expressar.
Tenho pavor na academia quando algum colega se refere às mulheres como confreiras ou acadêmicas. A função é masculina por uso e abuso dos povos e não significa necessariamente uma qualidade superior dos homens.
A própria igreja ainda não mudou a a expressão "Memento homo quia pulvis est" ("Lembra-te homem que és pó"). Por que somente os homens são pó e ao pó reverterão?
E o Homo sapiens é também uma forma de machismo? Ora, para ser coerente, as mulheres também tornarão ao pó e há mulheres tão sábias quanto os homens. Ou mais sábias ainda.
FERREIRA GULLAR
Baixo-astral
O melhor mesmo era andar sem rumo, porque, para isso, não precisava buscar razões
NÃO QUE ele pensasse em se matar, mas, se a vida tivesse outra porta, sairia por ela aquela tarde. Era uma tarde de sábado, iluminada de sol, o que o deixava ainda mais arrasado. Nada pior do que um dia lindo, se a vida não parece ter sentido.
Olhou para os móveis da sala: quatro poltronas, uma mesa de centro, uma estante e outra mesa menor com o telefone. Pensou: tanto faz estar aqui, agora, como não estar mais, já que esta sala estaria assim mesmo, quer eu tivesse morrido ou ido à esquina comprar jornal.
Se ao menos o telefone tocasse e alguém lhe dissesse alguma coisa, qualquer coisa. Até mesmo uma má notícia. Melhor uma notícia má que nenhuma. Mas não, o telefone parecia mudo para sempre, como se já ninguém morasse ali. Na casa dos mortos o telefone não toca mais, pensou. E decidiu sair dali, antes que se atirasse pela janela.
Desceu pelo elevador, cruzou o hall e chegou à rua, por onde passavam grupos de pessoas de calção e maiô, rumo à praia, que ficava a uma quadra e meia de sua casa. As pessoas, na sua maioria, conversavam alegremente e riam, como se vivessem uma outra existência, que não a dele. De onde tiram essa alegria?
Não entendia por que a vida se havia tornado tão destituída de sentido. O mundo estava alegre, cheio de sol, a brisa que vinha do mar brincava nas folhas, era uma festa. A festa que o animava outrora e que, agora, parecia-lhe uma irrisão.
Sem destino certo, foi caminhando, pois isso era a única coisa que conseguia fazer: andar, andar à toa, porque, se se mantivesse parado, como estava dentro daquela sala, alguma coisa terrível ocorreria, ou ele temia que ocorresse.
O melhor mesmo era andar sem rumo, porque, para isso, não precisava buscar razões, já que não encontrava razão para coisa alguma. E assim foi andando, sem razão e sem rumo. O vazio pesava sobre ele com o peso que o nada tem.
A avenida junto à praia escancarava-se à luz da tarde. Lá adiante, a faixa ampla de areia branca reluzia como uma espada. Gente e barracas coloridas derramavam-se por toda a extensão da areia.
Foi então agredido por aquela alegria externa a ele e que, de fato, nada lhe dizia. Caminhava junto aos prédios, cuja sombra o protegia do sol.
À porta da garagem de um deles, uma mendiga, aboletada entre dois sacos imundos, cheios de latas e pedaços de isopor, ocupava-se em costurar um pano imundo, que parecia uma blusa. Feliz de quem encontra sentido em costurar um pano sujo. As coisas só têm o sentido que lhes atribuímos, não importa se é um trapo achado no lixo.
E seguiu em frente, sem se deter, porque um homem se aproximava puxando dois cães de aparência feroz pela coleira. Eles ladravam e ameaçavam avançar sobre as pessoas. Afastou-se sem pressa, quase indiferente à fúria dos animais.
Adiante foi despertado de sua encucação por um casal de jovens, que o abordou sorridente. Eram de São Paulo e queriam ser fotografados em frente ao Copacabana Palace. O rapaz entregou-lhe a minúscula máquina fotográfica, postou-se abraçado à companheira. Batida a foto, os dois agradeceram a gentileza e se foram, enquanto ele continuou seu caminhar sem destino.
Ao chegar à esquina da rua Prado Júnior, depois de muito andar, parou um instante para descansar um pouco e se deu conta de que, no edifício em frente, há muitos anos, morara uma artista plástica, que costumava reunir amigos em seu apartamento, ali, no oitavo andar, para lhes mostrar seus trabalhos. Tornara-se, mais tarde, um nome internacionalmente conhecido.
E agora, quem moraria no apartamento? Algum dos filhos ou uma família desconhecida, que nada sabia do que ali se passara? As paredes não guardam nada do que se vive entre elas; só na mente das pessoas o passado persiste, pensou e cruzou a rua noutro tempo que aquele em que caminhava.
Ia em direção ao Leme e, por isso, decidiu parar. Haveria lembranças demais dali para adiante. Atravessou as pistas em direção ao calçadão até defrontar-se com o panorama de areia e mar, onde o presente o inundou.
Uma lufada de sol e brisa trouxe-o do fundo de si para o fervilhar da vida, da agitação vesperal que ocupava o mundo, onde ciclistas, crianças, moças, meninos, gente de muitas cores e tamanhos circulavam, falavam, tomavam água de coco. De novo o passado tentou se insinuar para outra vez lançá-lo no vazio e no desespero. Mas não conseguiu.
Abriu a camisa, tirou os sapatos e, com eles nas mãos, caminhou sobre a areia frouxa em direção ao mar. O mar azul e atual, que o fez de novo sorrir para a vida, sempre recomeçada. Mar azul, barco azul, ar azul.
DANUZA LEÃO
Os melhores tempos
Um telefonema inesperado, só para dizer que está com saudades, pode encher de alegria o coração
ÀS VEZES fico pensando: quais foram os melhores anos de minha vida? E você, pensa nos melhores da sua? Onde você estava, o que fazia, para que esse tempo tenha sido eleito por você como o mais inesquecível, entre tantos?
Não é fácil. Existiram tempos maravilhosos porque você estava em Paris ou Veneza; outros, tão maravilhosos quanto, numa praia do Ceará, nos tempos em que não tinha nenhuma responsabilidade; outros quando assumiu a primeira, com a chegada do primeiro filho. Pensando bem, foram muitos, diferentes e maravilhosos. Houve também os ruins e os muito ruins, mas esses são para guardar no fundo do coração, são só nossos e não se divide com ninguém.
Os bons tempos foram tão bons, e tantos, que fica difícil escolher. Seria quando você estava tão apaixonada -uma das vezes em que esteve apaixonada? Não, positivamente não.
Como se sofre quando se está apaixonada. A fragilidade de quem ama é de tal ordem que qualquer coisa pode fazer com que uma mulher, em segundos, passe da situação de ser a mais feliz do mundo para a de mais desgraçada do universo, e tudo depende dele, só dele.
Um telefonema inesperado, só para dizer que está com saudades, pode encher de alegria o coração de quem vive um amor. Mas qualquer atraso pode fazer com que uma mulher enlouqueça, literalmente, e faça as piores fantasias; naquele momento ela pode até achar que ele está num motel com a ex-esposa -é, mulher apaixonada fica insana- e que tinha razão quando achava que ele era mentiroso, fingido, e que as juras de amor ele fazia a todas.
Em parte todo homem merece que a mulher desconfie dele, e que ache, às vezes, que ele não vale nada. Na maioria das vezes ninguém vale tanto quanto a gente acha que vale quando está amando, mas esse é apenas um dos riscos que correm os que inventam se apaixonar.
O pior de tudo é que, quando se ama, se depende do outro para conseguir dormir, comer, fazer ginástica, dar uma boa risada, ler um livro, ir ao cinema, ser feliz, enfim.
Ou melhor: se depende do outro para viver. Agora, com a cabeça fria: dá para entender que todo mundo queira se apaixonar?
Mas tem também o outro lado: ser amada. E pior: ser muito amada. Quando um homem se apaixona, pode levar uma mulher à loucura, no melhor sentido -ou no pior.
No princípio, ela até gosta: qual a mulher que não adora ter um homem a seus pés?
Bem, até adora, mas durante um tempo, e em termos. O difícil numa paixão é não exagerar, não passar da medida, até porque quem ama demais está fadado a ser abandonado. O ser humano não costuma falhar, e nada faz com que uma pessoa se desinteresse mais rápido do que ter a certeza de que a outra está definitivamente conquistada.
Agora, a hora da verdade: quais foram os melhores tempos de sua vida? Sinceramente mesmo? Pois foram os tempos em que estava só e que não dependia de ninguém para ser feliz ou infeliz.
Era dona do seu nariz; mesmo quando viajava sozinha, e não tinha um amigo com quem jantar, e sentia aquela semi depressão de estar numa cidade estranha, num país estranho, muitas vezes com os termômetros marcando 0C, ah, que tristeza. Uma tristeza, sim, mas tão boa quanto as maiores alegrias.
Porque ela foi sua, totalmente sua, e as coisas que são só nossas e não dependem de ninguém não têm preço. Mas atenção: quando se descobre que se pode ser feliz totalmente só, passa a ser perigoso, porque a partir daí fica difícil pensar em voltar a dividir o controle remoto.
O controle remoto e a vida.
danuza.leao@uol.com.br
sábado, 26 de dezembro de 2009
27 de dezembro de 2009 | N° 16198
MARTHA MEDEIROS
Nunca imaginei um dia
Até alguns anos atrás, eu costumava dizer frases como “eu jamais vou fazer isso” ou “nem morta eu faço aquilo”, limitando minhas possibilidades de descoberta e emoção. Não é fácil libertar-se do manual de instruções que nos autoimpomos. Às vezes, leva-se uma vida inteira, e nem assim conseguimos viabilizar esse projeto. Por sorte, minha ficha caiu há tempo.
Começou quando iniciei um relacionamento com alguém completamente diferente de mim, diferente a um ponto radical mesmo: ele, por si só, foi meu primeiro “nunca imaginei um dia”. Feitos para ficarem a dois planetas de distância um do outro. Mas o amor não respeita a lógica, e eu, que sempre me senti tão confortável num mundo planejado, inaugurei a instabilidade emocional na minha vida. Prendi a respiração e dei um belo mergulho.
A partir daí, comecei a fazer coisas que nunca havia feito. Mergulhar, aliás, foi uma delas. Sempre respeitosa com o mar e chata para molhar os cabelos, afundei em busca de tartarugas gigantes e peixes coloridos no mar de Fernando de Noronha. Traumatizada com cavalos (por causa de um equino que quase me levou ao chão quando eu tinha oito anos), participei da minha primeira cavalgada depois dos 40, em São Francisco de Paula. Roqueira convicta e avessa a pagode, assisti a um show do Zeca Pagodinho na Lapa. Para ver o Ronaldo Fenômeno jogar ao vivo, me inflitrei na torcida do Olímpico num jogo entre Grêmio e Corinthians, mesmo sendo colorada.
Meu paladar deixou de ser monótono: comecei a provar alimentos que nunca havia provado antes. E muitas outras coisas vetadas por causa do “medo do ridículo” receberam alvará de soltura. O ridículo deixou de existir na minha vida.
Não deixei de ser eu. Apenas abri o leque, me permitindo ser um “eu” mais amplo. E sinto que é um caminho sem volta.
Um mês atrás participei de outro capítulo da série “Nunca imaginei um dia”. Viajei numa excursão, eu que sempre rejeitei essa modalidade turística. Sigo preferindo viajar a dois ou sozinha, mas foi uma experiência fascinante, ainda mais que a viagem não tinha como destino um país do circuito Elizabeth Arden (Paris-Londres-Nova York), mas um país africano, muçulmano e desértico. Aliás, o deserto de Atacama, no Chile, será meu provável “nunca imaginei um dia” de 2010.
E agora cometi a loucura jamais pensada, a insanidade que nunca me permiti, o ato que me faria merecer uma camisa-de-força: eu, que nunca me comovi com bichos de estimação, adotei um gato de rua.
Pode colocar a culpa no espírito natalino: trouxe um bichano de três meses pra casa, surpreendendo minhas filhas, que já haviam se acostumado com a ideia de ter uma mãe sem coração. E o que mais me estarrece: estou apaixonada por ele.
Ainda há muitas experiências a conferir: fazer compras pela internet, andar num balão, cozinhar dignamente, me tatuar, ler livros pelo kindle, viajar de navio e mais umas 400 coisas que nunca imaginei fazer um dia, mas que já não duvido. Pois tem essa também: deixei de ser tão cética.
Já que é improvável que 2010 seja diferente de qualquer outro ano, que a novidade sejamos nós.
Um lindo domingo para você e uma gostosa semana, a última de 2009.
27 de dezembro de 2009 | N° 16198
PAULO SANT’ANA
Bota dilema nisso
Se você, leitora ou leitor, fosse a Justiça, ou fosse um ministro do Supremo, teria devolvido o menino Sean Goldman ao seu pai legítimo nos EUA, ou manteria o garoto com seu padrasto e sua avó no Brasil?
Nesta hora é que todos nós folgamos em não ter de decidir uma questão tão espinhosa. Melhor que não sejamos nós que tenhamos de contentar uma parte e desprezar a outra.
Que encrenca! Qualquer que fosse a decisão, amassaria uma das partes.
Intuitivamente, todos nós respeitávamos o direito do pai biológico do garoto de tê-lo sob sua guarda, como afinal aconteceu na véspera de Natal, quando o menino foi recambiado para os EUA por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal.
Mas como não dar importância ao enorme tempo em que o garoto ficou sob a guarda de seu padrasto e se afeiçoou ao lar brasileiro?
Também há que se considerar, como fator importante no caso, o fato de o pai biológico do garoto ter restado nos EUA sozinho, sem seu filho, depois que sua ex-mulher morreu no Brasil.
Se eu fosse o juiz do caso, faria um raciocínio simples: se vivesse ainda a mãe brasileira do garoto, que se separou do pai nos EUA e veio morar com o menino, fosse ela viva, não teria dúvida em deixar a criança sob sua guarda no Brasil.
Mas tendo ela morrido aqui em nosso país, ninguém mais legítimo para deter a guarda do garoto do que o pai. Ele detém mais legitimidade que o padrasto e a avó brasileiros.
Pesou também na decisão, com certeza, o detalhe de que era deixar o menino com seu pai ou com seu padrasto. Nesse caso, era absolutamente claro que o direito de guarda sobre o garoto era do pai, cujo laço de consanguinidade era direto com o menino.
Mas não foi fácil decidir. A avó do garoto mostrava cartazes escritos por Sean em que ele escrevia que desejava permanecer no Brasil.
A vontade da criança, nesses casos, tem valor relativo, pode muito bem ser contestada.
Adivinha-se que o menino quisesse mesmo permanecer com o padrasto e a avó no Brasil, o vínculo sentimental que se instalou entre os três é indesmentível.
Mas e o pai, como ficaria se o menino permanecesse aqui? De mãos abanando?
Como, tão pronto a decisão do ministro presidente do STF foi divulgada, os EUA se apressaram em aprovar, no Senado, a extensão de um programa de isenção tarifária que favorece o Brasil e outros países, a avó do garoto declarou: “Não esperava que meu neto fosse trocado por um acordo econômico. O meu país, o país do Sean, já que ele é brasileiro nato, vendeu uma criança”.
Dito assim, parece que houve uma violência. Mas, embora não visível, se nota a sensação da avó e do padrasto de que era muito forte e talvez indestrutível o argumento do pai biológico. Essas questões são quase sempre resolvidas levando-se em conta o vínculo sanguíneo, embora sempre tenha a contestá-lo uma realidade sentimental pungente, exatamente como aconteceu neste caso.
Foi triste ver aquela criança embarcar no avião na quinta-feira com seu pai. Todos os que viram a cena pela televisão se indagavam se o coração do menino não estava partido, entre o afeto pela avó e pelo padrasto e o direito inquestionável do pai, pelo laço de sangue, de ter o seu filho junto de si.
O que será que se passava na mente e no coração de Sean?
Resta a esperança de que se entendam as partes para que o menino seja visitado em toda a vida pela avó e pelo padrasto.
27 de dezembro de 2009 | N° 16198
MOACYR SCLIAR
A vida sob os viadutos
No Colégio Júlio de Castilhos aprendi uma canção francesa chamada Sob as Pontes de Paris (Sous les Ponts de Paris). Dizia mais ou menos o seguinte: “Sob as pontes de Paris/ quando desce a noite/ toda a sorte de vagabundos se infiltra sorrateiramente/ e ficam felizes de encontrar onde dormir”.
Porto Alegre não tem o Sena, nem as pontes de Paris. Mas Porto Alegre tem o Arroio Dilúvio, com suas pontes e, sobretudo, Porto Alegre tem os viadutos. E ali, como na capital francesa, muita gente procura abrigo. No ano passado, um levantamento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), órgão da Prefeitura, falava em 1200 moradores de rua.
Numa cidade com mais de um milhão de habitantes não chega a ser um número muito grande. Mesmo muito pobres as pessoas acabam achando uma casa; nem que seja um barraco na periferia.
Morar na rua é opção, e resulta, sobretudo, de uma vida infeliz. Quase a metade dessas pessoas tem problemas familiares; 70% vivem sós, uma situação para a qual colaboram o alcoolismo e as drogas.
Ou seja: não é só uma questão social, é mais complicado que isso.
Qual é a condição básica para viver, ou sobreviver, em baixo do viaduto? Eu diria que é a indiferença. Para essas pessoas, aquilo que incomoda a classe média em absoluto não conta. A falta de privacidade, por exemplo. Tudo que os moradores de rua fazem é público, tudo.
Eles estão ali, comendo, ou bebendo, ou dormindo, ou fazendo as necessidades, absolutamente indiferentes ao olhar dos outros. Há quem não consiga conciliar o sono com barulho; não é o caso deles.
Por sobre suas cabeças, no viaduto, ruge o tráfego urbano, intensíssimo num país em que o carro se tornou um indicador maior de progresso e de afluências. Isso não impede que durmam (é claro que a cachaça atua como um sonífero poderoso).
Também a noção de propriedade para eles é diferente. Sim, têm as suas coisas, que em geral cabem num carrinho de supermercado – em todas as partes do mundo os gerentes desses estabelecimentos já devem ter aceito com resignação o fato de que tais carrinhos serão sumariamente confiscados.
Mas, por outro lado, muitas vezes deixam essas poucas coisas abandonadas. Na manhã do domingo passado passei sob o viaduto da Silva Só, onde vivem muitos habitantes de rua.
Detive-me a contemplar um colchão. Era um colchão de espuma, velhíssimo, esburacado. Sobre ele, um cobertor, igualmente velho, esburacado. Mas, e esse foi o detalhe que me impressionou, e comoveu, o cobertor estava cuidadosamente dobrado, caprichosamente dobrado. Pensei então no homem ou na mulher que o havia dobrado.
Ao fazê-lo, talvez num ato automático e reminiscente de uma infância quem sabe vivida de uma maneira melhor, essa pessoa colocara um pouco de ordem em sua vida.
Uma partícula de ordem, por assim dizer, mas que deve ter contribuído para restaurar algo da dignidade que existe em qualquer ser humano, por mais precária que seja sua existência. Ao ver o cobertor dobrado, a pessoa deve ter ficado satisfeita consigo mesma: eu não sou um traste completo, eu sou alguém, ainda existe esperança para mim.
Ou seja: sob os viadutos de Porto Alegre, como sob as pontes de Paris, a vida resiste.
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