Homens que correm com lulus-da-pomerânia
No mundo da produtividade incessante, o cachorro te obriga a parar e pôr as duas patas na rua. Não nasci para tutora de pet. Ou achava que não tinha nascido. Nunca imaginei ter um até que minha filha cresceu um pouco, ganhou voz e passou a latir pelo seu desejo. E como latiu. Acabei por me render e hoje temos uma cadelinha que pesa o mesmo que um frango.
Claro que passei a amar a cachorra. E o que eu mais temia na aventura de ter um pet se revelou a minha parte preferida: levá-la para passear. Tem horas que detesto ter que levantar para fazer isso. Como aqueles domingos em que já bebi demais e minhas nádegas estão grudadas feito um imã à poltrona. Ou nos dias de semana, quando estou escrevendo e não quero parar, não quero interromper o fluxo.
É aí que entra uma das vantagens do passeio: é preciso interromper o fluxo. No mundo da produtividade incessante, o cachorro te obriga a parar. No mundo do carro e do condomínio, te obriga a colocar as duas patas na rua. No mundo da tela, te obriga a contemplar. No mundo solitário da escrita, te obriga a interagir com o outro.
Cachorro da raça lulu-da-pomerânia
Como pais e mães de bebês, que se reconhecem imediatamente pelas olheiras e pelos apetrechos do puerpério, os tutores também se enxergam nas suas similitudes. Adoro observar os bípedes dos quadrúpedes. Geralmente a dupla tem o mesmo estilo: homem fortão com cachorro grande ou parrudo, perua com cachorro de roupa e chuquinha, senhora de idade com cãozinho miúdo, tipo esportivo com tipo corredor e, num país em que a desigualdade social chega até nos cães, vira-latas magros, mas bem-amados, junto de moradores de rua.
Mas nem sempre tudo é tão previsível. Às vezes a vida dá "shuffle" e você vê um daqueles sujeitos de carranca e porte ameaçadores, que normalmente fariam uma mulher atravessar para o outro lado da rua, sendo arrastado por um delicado lulu-da-pomerânia.
E aqui digo sendo arrastado porque, muitas vezes, são os canis que guiam os sapiens. Donna Haraway diz que homens e cães são "parceiros no crime da evolução humana". Espécies companheiras que criam uma à outra na carne. Que se transformam mutuamente, para melhor, em diversos aspectos.
Graças à minha cachorra me torno uma pessoa mais empática. E até mais tolerante. Esses dias, ela encasquetou de cheirar o cão de um sujeito de orientação política totalmente oposta à minha, como mostrava a estampa de sua camiseta.
Travada naquela situação, sem conseguir desembestar a bichinha dali, acabei por conversar com o sujeito e até dar uma risada, coisa que nunca aconteceria em outra circunstância.
Achei a experiência saudável mas confesso que, ao me distanciar um pouco, olhei de novo para a camiseta dele e voltei a rosnar. Civilizados ou não, domesticados ou não, ainda somos todos de sangue e osso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário