O desafio da simplicidade
Pacto da Linguagem Simples encontra resistência no meio jurídico. Em dezembro do ano passado, foi anunciado o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, que nasceu do reconhecimento de que a linguagem adotada no Direito é hermética, inacessível e, portanto, excludente. Há, porém, resistência às mudanças, sob o argumento de que simplificação é rebaixamento.
Simplificar, como sabemos, é o oposto de complicar. Ambos os termos têm na origem a palavra latina "plica", que quer dizer "dobra" ou "prega", estando a oposição entre eles marcada pela ausência ou presença de "dobras". "Explicar", da mesma família etimológica, é desdobrar ou "tirar das dobras". Então, o que é simples está acessível, e o que é complicado precisa ser explicado. Simplificar não é rebaixar, mas tornar visível ou inteligível.
No caso do Direito, já se usa o termo "juridiquês" para denominar uma linguagem que tem ares de idioma estranho. A mim parece impróprio, porque confunde dois traços da linguagem usual no meio forense: o vocabulário técnico, com direito a expressões latinas, e certo estilo rebuscado, cheio de termos antigos ou raros.
Uma expressão como "consorte supérstite", por exemplo, embora usual no Direito, não é parte do seu vocabulário técnico. Muita gente, mesmo bem escolarizada, não saberia de imediato que significa o mesmo que "viúvo". Por que usar "ergástulo público" ou "cártula chéquica" em vez de "cadeia" ou "talão de cheques", respectivamente?
Antes que comecemos a lamentar a ignorância das pessoas, a falta de leitura ou os baixos níveis educacionais, vamos lembrar que, assim como novas palavras nascem e se fixam na língua, há palavras que vão caindo em desuso e se arcaízam. E isso é normal. Menos natural é colher no rol de arcaísmos um punhado de termos raros, que, por serem usados uma vez ou outra, são desconhecidos e soam eruditos.
O desafio mesmo parece ser dizer coisas relevantes em linguagem simples, clara, com vocabulário preciso.
Não é à toa que textos assim escritos parecem peças de antiquário. Nada contra as peças de antiquário que são, de fato, antigas e trazem consigo o sabor da época em que foram produzidas. Que dizer, porém, de uma antiguidade fabricada no presente?
Cada um é livre para ter o próprio estilo, mas não parece apropriado complicar e obscurecer o sentido de sentenças judiciais, leis ou contratos, que afetam diretamente a vida do cidadão. Ao que tudo indica, não haveria um motivo forte para manter esse estilo, a não ser a tradição. Como essa tradição entra em contato com uma realidade linguística muito diferente, que é a dos novos operadores do Direito, o resultado acaba sendo um curioso amálgama.
Os mais jovens têm as mesmas dificuldades de escrita que acometem os estudantes e profissionais de todas as áreas, mas logo se veem empregando construções como "resta comprovado", "em sede de", "eis que" e outras, não raro desconhecidas até dos dicionários, só usadas no meio jurídico. O discurso não tem mais "cártulas chéquicas", até porque o próprio talão de cheques já se tornou obsoleto, mas continua marcado e, muitas vezes, traz impropriedades linguísticas e defeitos de sintaxe emaranhados num pseudoeruditismo.
A tendência, se é que podemos arriscar um palpite, é que a linguagem do Direito se modernize e se aproxime da linguagem acadêmica (ou mesmo jornalística), em geral mais simples e objetiva, voltada para a clara transmissão do conteúdo. Esse, no entanto, é um caminho a percorrer. Não parece possível obrigar alguém a simplificar a própria linguagem; pode-se, isto sim, numa fase de transição, criar "tradutores", que sejam capazes de reformular os textos de modo que se tornem acessíveis aos "não iniciados".
Na prática, os jornalistas fazem esse trabalho no seu dia a dia, comunicando ao grande público decisões tomadas nas altas instâncias da Justiça, esmiuçando o conteúdo e as consequências de projetos de lei em votação, enfim, trazendo informação para o leitor médio.
É bom lembrar, no entanto, que não é só no Direito que se usa a linguagem para dizer pela forma algo que vai além do conteúdo. Em algumas áreas do saber, há um verdadeiro culto da linguagem rebuscada, mas em outra direção (coisas como "a construção da representação de mulheres transexuais a partir de recursos linguístico-semióticos no contexto da teoria de fulano"), que parece um esforço para transmitir credibilidade científica. É uma espécie de rebuscamento científico, comum em círculos universitários. Esse, porém, é tema para outra conversa.
O desafio mesmo –e vale para todos– parece ser dizer coisas relevantes em linguagem simples, clara, com vocabulário preciso e diversificado.
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