Nada mais tem valor se não for documentado e exposto para centenas
Ainda não me convenci de que existo mais dentro do celular do que aqui fora, onde espirro, tropeço, bocejo e digito.
Era 2009 e eu estava em Marrakech pela primeira vez, encantada com os tecidos, os tapetes e as especiarias do souk, o mercado a céu aberto da cidade. Em meio ao agito de vendedores e turistas, pedi a uma amiga que tirasse uma foto minha.
Primeiro erro: não pedi licença para as senhoras que estavam posicionadas logo atrás de mim, expondo seu artesanato. Segundo erro: eu deveria saber que algumas religiões e culturas consideram que a fotografia rouba a alma das pessoas. Só me dei conta quando vi a foto depois: todas as figurantes involuntárias haviam tapado seus rostos com as mãos, a única arreganhada era eu.
Houve um tempo em que celebridades também tapavam o rosto diante dos paparazzi, a fim de esconder as olheiras depois de uma noite forte ou o flagrante ao sair da boate às seis da manhã com o marido de alguém.
Mario Quintana, idem, antipatizava com fotógrafos: não tinha interesse em ser eternizado e os enxotava. Até que, na véspera de seus 80 anos, uma fotógrafa de 23, de forma premeditada, se hospedou no mesmo hotel em que Quintana morava, em Porto Alegre. Encasquetou que o faria mudar de ideia e que conseguiria retratá-lo.
Duelaram alguns dias. Por fim, ela saiu mais vitoriosa do que pretendia: tornou-se uma de suas melhores amigas. Essa aproximação entre eles virou um texto para teatro que foi publicado em livro, chama-se Minha Sombra Luminosa, do ótimo Tomás Fleck. Quintana teria completado, no último 30 de julho, 118 anos de idade, e devemos a Liane Neves as imagens que trazemos dele até hoje.
Quem gosta de ser fotografado, está à vontade neste novo mundo. Já quem não gosta, paciência, é obrigado a se render: nada mais tem valor se não for documentado e exposto para centenas, milhares. Há quem fotografe a fatia de bolo que segura entre os dedos, há quem clique seus lençóis amarfanhados e escreva “aftersex” na legenda, para anunciar que transou. Até aí, por mais bizarro que pareça, é da vontade de cada um.
O problema é quando você não quer aparecer numa foto abraçado a torcedores exaltados, não quer ser fotografado dançando solto na pista, tem motivo nenhum para sorrir para uma selfie forçada. Fazer o quê? Nada. É como envelhecer: a alternativa seria ter morrido antes.
Virou prova de vida, do bebê recém-saído do útero ao moribundo antes de receber a extrema-unção: fotos para o Face, para o Instagram e para todos os porta-retratos digitais que a população vê e compartilha. Entrei nessa, claro, preciso manter meu público cativo, mas ainda não me convenci de que existo mais dentro do celular do que aqui fora, onde espirro, tropeço, bocejo e digito. Ainda preservo algumas camadas espectrais. Creio que apenas 30% da minha alma esteja em mãos alheias.
Martha Medeiros
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