terça-feira, 19 de abril de 2022


19 DE ABRIL DE 2022
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Gauchismo líquido

A mera presença do adjetivo "líquido" ao lado do substantivo "gauchismo" já causa um pequeno incômodo no leitor conservador, imagino eu. Como assim tratar como fluido, fluente, passageiro, escapadiço, aquilo que o conservador imagina sólido, imutável, estável, inteiriço?

Desde essa vizinhança, então, estamos em presença de uma atitude crítica, que avisa que não vai levar livre a matéria de que se ocupa, não vai apenas reiterar a visão tradicionalista gaúcha, que não se reporta ao passado, simplesmente, mas o idealiza e o codifica, estabilizando práticas, crenças, valores como se fosse possível viver num patamar acima das tensões sociais da vida.

Claro, nem todo frequentador de CTG vive assim, mas é certo que em momentos decisivos há instâncias que bloqueiam mudanças, de vez em quando bastante banais. Quem não lembra o caso do sujeito que foi barrado num baile por estar usando brinco?

Pois há um livro que se chama Gauchismo Líquido. A autora é Clarissa Ferreira, musicista que muito frequentou eventos gauchescos e etnomusicóloga que tomou essas práticas culturais como objeto de reflexão. Há alguns anos já mantinha um blog de mesmo nome, mas o livro é o livro - e que livro! Capa dura, guardas internas em cor, com uma dinâmica interna bem concebida entre textos em prosa e intervalos poéticos, um verdadeiro primor da editora Coragem (editoracoragem.com.br).

O livro tem méritos para muito além da disposição para o debate e da atitude analítica firme e serena. Tem o fato de que a Clarissa se habilitou na longa série de intelectuais, escritores, cancionistas, homens e mulheres, que ao longo do tempo meditaram sobre o tema. O livro então é uma retomada, não um marco-zero: se sabe participando de uma tradição, na qual ingressa aparelhado de uma perspectiva renovadora, feminista, aguda, iluminadora, sobre a cultura gaúcha, gauchesca, tradicionalista, esse universo todo.

Pessoalmente, me agrada muito que o livro traga também elementos bem circunstanciais - a data da primeira publicação daquele texto no blog, as notas que dialogam criticamente com outros autores, o relato do momento vivido que se transformou em matéria de reflexão. Elementos que são como a placenta desse novo ser, de papel mas cheio de energia vital, que merece a leitura de todos os interessados na vida ao redor de nós.

LUÍS AUGUSTO FISCHER

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