23 DE ABRIL DE 2022
MARTHA MEDEIROS
O lado sadio da doença
Já comentei que sou a legítima faísca atrasada. Fui a última a namorar entre as minhas amigas do colégio e, claro, a última a transar. A última a trocar vinil por CD, a dirigir um carro com câmbio automático, a ter perfil nas redes. Por sorte, fui a última a contrair covid também - me contaminei semana passada. Quem mandou descuidar do uso da máscara durante um show? Atenção, plateias: a pandemia não acabou. Graças às três doses da vacina, nada de grave aconteceu, apenas fiquei uns dias isolada no quarto, prostrada na cama. Com o corpo moído e uma tosse seca, fora de combate, me restou pensar na vida.
Foi então que lembrei que o mundo não acaba se a gente tiver que parar. Má notícia para os narcisistas, mas para os simples mortais é uma libertação: você acorda mais tarde que o habitual, volta a dormir depois do almoço, dá outro cochilo à tardinha, tudo em plena terça-feira, e a vida que você construiu com tanta responsabilidade e disciplina não entra em colapso. Sua patroa não vai morrer se tiver que ela mesma cozinhar e lavar a louça. Seus alunos contarão com uma professora substituta.
Alguma vizinha dará uma espiada em suas crianças. Se você nasceu com privilégios, tem ainda menos motivo para se preocupar. Os e-mails que você não respondeu continuarão aguardando seu retorno. Nenhum contrato será desfeito pelo atraso da sua assinatura. A live cancelada será remarcada sem prejuízo aos rumos da humanidade. As dívidas continuarão sendo pagas no débito em conta e as pessoas que precisam do seu suporte não darão nem um espirro enquanto você não se recuperar.
Conspiração mágica do universo: quando um pilar deixa de estar disponível, o outro se apruma.
Refleti também sobre o sentimento de culpa, que tanto nos atazana. Tive que atrasar um trabalho "urgente" e não consegui prestigiar um evento "imperdível", e nenhum desses adjetivos se justificou. Meu humor não estava dos melhores e incomodei um amigo médico com alguns WhatsApps - paciência.
É admirável nossa dedicação para conquistar o troféu de Melhor Pessoa, mas às vezes a gente passa por uma necessidade imprevista e vira um estorvo, um mala, fazer o quê? Adoecer é uma porcaria, desarruma um esquema que funcionava direitinho, nos enfraquece fisicamente e a cabeça também pifa um pouco, mas faz a gente enxergar que a correria insana dos dias não deixa de ser uma doença também. Queremos tanto ganhar tempo, mas fazemos o quê com o excedente? Acumulamos ansiedade, só isso.
Queria que ninguém mais fosse contaminado por esse maldito vírus, mas se for, que vire para o lado, durma mais um pouco, repouse e desconecte: contar com a solidariedade dos outros e aceitar que somos dispensáveis ajuda na cura.
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