15 DE ABRIL DE 2022
DAVID COIMBRA
Bacalhaus
Olaf comia bacalhau. Era loiro, como todos os noruegueses são. E alto e belo e forte, como nenhum era. Diziam que arremessava duas lanças ao mesmo tempo, com igual precisão; que fatiava um homem vivo manejando espadas em ambas as mãos ao mesmo tempo; que era capaz de correr sobre remos em movimento, no lado de fora do barco.
Perto do ano 1.000, Olaf foi empossado rei. Convertido ao cristianismo, decidiu que os súditos deveriam professar a mesma fé. Como alguns camponeses seguissem fazendo sacrifícios a Tor, Olaf disse que, tudo bem, aceitava os sacrifícios, só que os sacrificados tinham de ser eles, os líderes dos camponeses. Assim, toda a Noruega rapidamente tornou-se cristã com fervor.
Havia ainda alguns renitentes, o mais conhecido deles um camponês chamado Rand. Irritado com a teimosia de Rand, Olaf determinou que o punissem. Desta forma: amarraram-lhe os pés e as mãos, abriram-lhe à força a boca e nela enfiaram uma víbora de bom tamanho. A seguir, atearam fogo ao rabo da serpente, impelindo-a garganta adentro do infeliz Rand, que morreu com gritos horrendos quando o animal passou do estômago e bateu na barreira intransponível das ilhargas.
Com argumentos assim convincentes, embora pouco cristãos, Olaf persuadiu a Noruega inteira a adotar a religião da bondade e da tolerância. Mas teve de ser duro. Não era fácil obrigar os vikings a fazer o que não queriam. Pois não havia nada que eles mais apreciassem do que lutar. Morrer na cama, longe do campo de batalha, era uma vergonha. Mas, se o guerreiro morresse em combate, as Valquírias, chamadas "escolhedoras dos assassinados", o levavam para o Valhala, onde ele passava os dias lutando guerras gloriosas e as noites bebendo cerveja no crânio dos inimigos.
Cara, eu adoro esses vikings! Mas estou escrevendo sobre eles porque desde aquela época de Olaf eles já comiam bacalhau. E hoje, Sexta-Feira Santa, aí está você, como um viking convertido, degustando seu bacalhau à Gomes de Sá e lembrando que Jesus expirou na cruz e tudo mais. Só que a cruz deveria ser o menos importante para os comedores de bacalhau. O mais importante deveria ser a filosofia. Que eles, e você também, continuassem adorando Odin e Loki, mas compreendessem a ideologia igualitária do Sermão da Montanha, a grandiosa peça de sabedoria do Novo Testamento. Que compreendessem o que significa não reparar no argueiro no olho do irmão, que é preciso saber a razão da magnificência dos lírios do campo, que sua alma estará onde estiver o seu tesouro e qual é a lógica de amar o inimigo. Se um pouco disso fosse entendido, então você não comeria bacalhau sem convicção alguma, como um viking coagido. Você seria, como disse um dia o filósofo naquele monte de Cafarnaum, o sal da terra.
Texto originalmente publicado em 14 de abril de 2006
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