Páscoa, Serjão e o silêncio
Páscoa sempre é um momento especial para pensar e falar em morte, ressureição, renovação, coelho, ovo, peixe, chocolate, renascer e passagem. Nesta Páscoa, poucos dias depois da morte repentina do Serjão (Sérgio Tavares Domingues), o morador de rua oficial do Moinhos de Vento, provavelmente o homeless mais visível de Porto Alegre , é bom lembrar a trajetória desse nosso Carlitos do bairro. Não se sabe bem porque Serjão escolheu o Moinhos para viver durante, seguramente, mais de vinte anos. Provalmente ele escolheu o bairro por que ele era, no fundo, fidalgo, cavalheiro e tinha ares de líder tribal africano.
Mas os moradores e comerciantes do boulevard sabem bem porque o adotaram e, principalmente, porque o ajudaram muito nos últimos anos. Sabem bem e guardam com alegria e orgulho as lembranças daquele que, depois de dormir aqui e ali, fixou residência no miolo da Padre Chagas.
Serjão, que alguns chamavam de Cheirinho, Cheroso e Maloca, recebeu carteira de identidade há cinco anos, no dia 2 de fevereiro de 2017, depois do enorme trabalho de alguns anos do empresário Claiton Franzen, psicólogo e dono do Dometila Café. "As pessoas passaram a me enxergar", disse Serjão sobre as mudanças dos últimos anos, depois do RG e dos cuidados que recebia de moradores e comerciantes, especialmente de Vivian Neuls, proprietária da loja Estação do Banho.
Antes de ser adotado e receber cuidados e doações das pessoas do bairro, Serjão fumava, bebia e criava alguns problemas, alguns meio sérios, mas isso, felizmente, ficou para trás e não vou lembrar aqui os detalhes. Nos últimos anos sua porção lorde, abstêmia e bem comportada tornou-se marca registrada e o convívio diário passou a ser tranquilo, feliz e muito bom. Depois da carteira de identidade, dos remédios e atenções, Serjão renasceu, se reiventou e foi uma pena que faleceu jovem, aos cinquenta e seis anos. Mas as pessoas não morrem, ficam encantadas e só se vão mesmo quando ninguém mais lembra delas. Serjão vai viver muito tempo e nessa Páscoa vale rezar por ele e por nós e por bons renascimentos.
Serjão acompanhou de perto todas as mudanças no Moinhos, um bairro que mescla elegantemente passado, presente e futuro e que é um dos mais históricos, democráticos e plurais de Porto Alegre. O Moinhos é de todos os porto-alegrenses, gaúchos, brasileiros e dos muitos estrangeiros que aparecem por aqui para turismo, negócios e para flanar alegremente por suas ruas arborizadas e floridas. Serjão até merecia uma escultura ou estátua, para mostrar para sempre que enquanto há vida, existe esperança e que todas as pessoas têm o direito de terem rostos, nomes, histórias e de serem vistas.
A partir principalmente dos gestos de Claiton e Vivian, Serjão corporificou o que os humanos têm de melhor, que é a humanidade, a solidariedade e a consciência de que somos anjos de uma asa só, necessitando dos outros para voar.
A propósito...
Até e principalmente por conta da esquizofrenia, Serjão era de poucas palavras, mas era ativo e se comunicava por meio de olhares e silêncios por vezes eloquentes. Durante um tempo juntava as moedas que lhe davam e pedia para as pessoas que lhe dessem cédulas em troca. Dias antes de falecer, Serjão deu uma ajuda, carregando as compras num supermercado, para o gringo do Mercado Moinhos da Luciana de Abreu. Serjão está com Deus, vivendo na outra dimensão e nos deixa ótimas lembranças.
Há muitos anos atrás, a Zero Hora fez uma reportagem sobre o bairro, seus bares, restaurantes, lojas, pessoas e tudo mais, e a repórter foi falar com o Serjão. "Não dou entrevistas", disse ele, discreto, afastando-se. Até sempre, Serjão, fica bem aí e pede uma ajuda para o Gastão, o Zadu, o Pedro Melo e outros amigos do Moinhos.
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