sábado, 16 de abril de 2022

16 DE ABRIL DE 2022
ELIANE MARQUES

FILHOS DO ESTUPRO

Estamos no tempo da psicanálise, um tempo situado entre os mitos mortos, pois não contados, e o primeiro ou o último mito contado e interpretado, posto no t=0, tempo de fundação. No tempo dos mitos mortos, o assento da cultura não parte do assassinato do pai da horda primitiva como constituinte do sentimento de culpabilidade que engendrará leis simbólicas; o pai já está morto e seu assassinato torna impossível o gozo. 

Na singularidade americana, o crime primordial é o do estupro da mãe (preta). E não afirmo isso numa dimensão sociológica ou histórica, mas numa pergunta sobre o quê faz laço social. No sonho freudiano contado, os irmãos mataram quem os queria devorar e estabeleceram leis em comum proibindo a devoração. O banquete totêmico era a única ocasião em que se permitia a quebradura das leis, de modo que o famoso Édipo freudiano e a criança, não apenas a cronológica, alucinam intensamente o gozo.

Quando afirmo singularidade americana, refiro-me ao que não é particular e nem universal, embora esteja em relação a eles. O singular se inscreve num tempo e num espaço, ainda não sabido, mas igualmente enseja laço social (ainda que nada se saiba dele).

De forma diversa do narrado em Totem e Tabu, os filhos e as filhas do estupro primordial continuam incapazes de construir uma tradição simbólica inclusiva a partir do lodo da violação, como evidencia a frase "Somos filhes de um estupro". Se, com esse enunciado, queremos nos mover para além do sadomasoquismo gilbertofreyriano, fracassamos, pois repetimos, sem recordar, parte dos mitos mortos.

"Somos filhes de um estupro" escamoteia o pai contra a mãe. Na enunciação, negamos a estuprada e o estuprador, afirmando nossa descendência (de branqueados, enegrecidos e indianizados) de um puro crime, como se nossa vida envergonhada estivesse apenas no seu repetitivo acontecer. A vergonha corresponde à subjetividade voltada para o apagamento dos traços da singularidade que engendra uma degenerescência daquilo que deveria nos mover.

Somos filhes de uma mãe estuprada. Mas funcionamos como se fôssemos a vítima ao assumirmos seu lugar e a empurrarmos de volta para um porão negreiro. Esse ato dá conta de um masoquismo narcotizante, que talvez marque as subjetividades americanas, impotencializadas diante da marca mnêmica inaugural. A impotencialização é de tal monta que sequer chegamos à possibilidade da triangulação orungânica (Iemanjá, Aganju e Orungã). Negamos Iemanjá, Aganju e Orungã.

O mito "Iemanjá é violentada pelo filho e dá à luz os orixás", encerra dizendo "Cada filho de Iemanjá tem sua história, cada um tem seus poderes". O estupro marcou o início de certa cultura/civilização, assim como o assassinato do pai da horda primitiva também o marca no t=0. Se Freud se vale do crime de assassinato como fundante da cultura numa pretensão universal; o crime de estupro, com assento na frase objeto deste texto, é fundante da singularidade amefricana ainda carente de levantar seus mitos mortificados.

ELIANE MARQUES

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