06 DE MAIO DE 2021
DAVID COIMBRA
O homem-réptil
O meu afilhado Santiago, filho do Potter e da Marcella, tem menos de dois anos de idade. É, basicamente, um nenê que anda. Ele mais tartamudeia do que fala, ele experimenta o mundo com as pequenas mãos gorduchas e com os olhos curiosos, ele é todo redondinho, como devem ser os nenês.
Li que os cientistas têm uma tese sobre bebês humanos e filhotes de bichos: eles são bonitinhos para comover eventuais predadores, sobretudo os da própria espécie. Um leão, por exemplo, não gosta de concorrência. Ele sabe que seu filhote crescerá, se tornará adulto e forte, enquanto ele, o pai, envelhecerá e se tornará mais fraco a cada ano. Então, o leão, muitas vezes, devora seus filhotes, como o deus Saturno. Mas, se os filhotes são belos e fofinhos, existe a possibilidade de o leão olhar para a ninhada e se condoer de lhes fazer mal e ir embora balançando a juba.
Claro, uma serpente não se comove com nada. Serpentes são, naturalmente, insensíveis. Não foi à toa que Jeová disse àquela que ofereceu a maçã a Eva:
"Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens. Rastejarás sobre teu ventre e comerás pó todos os dias de tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar!"
Escrevo isso pensando na tragédia de Saudades. Escrevo tentando entender como um ser humano é capaz de fazer mal a um anjinho de menos de dois anos de idade, um bebê redondinho, de beleza enternecedora, inocente como um filhote de leão, indefeso como um passarinho engaiolado.
Como isso é possível?
Pensei então que há homens que são como as serpentes, incapazes de sentir piedade, incapazes de se compadecer com a dor do outro. Serpentes em forma humana, é o que são. Répteis de sangue frio, para todo o sempre amaldiçoados.
Nossa missão, a missão da sociedade organizada, é identificar essas criaturas antes que elas possam fazer mal. Temos de refletir sobre isso, temos de montar estratégias para evitar que a monstruosidade de Saudades se repita.
Saudades... A Rádio Gaúcha mandou o repórter Vitor Rosa para Saudades. Vitor descreveu o que viu, como fazem os bons repórteres. Contou sobre a comoção da cidade, a tristeza invencível dos pais dos pequenos anjos atacados pelo homem-réptil, a dor e a perplexidade que contornam cada esquina. Contou tudo isso, o Vitor Rosa, e contou também sobre algo aparentemente prosaico que testemunhou: no velório coletivo, os pais das crianças sobreviventes apertavam com muito mais força as mãozinhas delas. Não há cena que resume com maior força o que aconteceu. Todos os pais do Brasil, hoje, estão, de alguma forma, apertando forte as mãos de seus filhos. E, na falta de garantias humanas, olhando para os céus e suplicando a Deus: "Cuida dele! Cuida dele!"
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