A ÚLTIMA NEGRA
Arqueóloga branca encontra corpo congelado de mulher negra num Brasil onde não existem mais sequer vestígios de pessoas negras há pelo menos um século. A sobreviventa, chamada de artefato negroide por cientistas e políticos, foi aprisionada em sala para interrogatório e pesquisa. Porém, ela se nega a ensinar a escuta àqueles que nunca quiseram ouvir. A artefato fala e se constitui como mulheridade/humanidade pelo nome Dandara e pela filiação a alguém que criou estratégias para que ela vivesse.
Se fosse personagem do livro de 1929, de Adalzira Bittencourt, S. Exa. a Presidente da República no ano 2500, Dandara, como vaso ou sapatinho de criança, consistiria uma evidência de que houve certa sociedade que envidou esforços para criar uma democracia dos semelhantes, consagrando-se, ao final, exitosa. No livro, a autora narra que, no Brasil do futuro, não havia nenhum preto, nenhuma preta, apenas gente clara, pois se retornaram à África aqueles que tivessem até a 20ª geração de sangue africano.
Da mesma forma, se Dandara fosse personagem do livro publicado por Monteiro Lobato, em 1926 - O Presidente Negro ou o Choque das Raças: Romance Americano do Ano 2228 - haveria apenas sobras de seus ossos, pois, conforme o autor, nos Estados Unidos, local do romance, a eugenia dera cabo do pobre; a higiene, do doente; e a eficiência, do vagabundo, assim como uma fórmula química esterilizara a população negra.
Porém, não chegados ainda em 2228, o coletivo Projeto Gompa se adiantou a esses sonhos reiterativos de uma branquidade para, ao instrumentalizar linguagens cotidianas e até televisivas, cortando- as por uma sincronia poética, resgatar Dandara e sua dinastia do desejo de morte de todos dias.
Dandara nasce no espetáculo online de teatro A Última Negra, protagonizado e idealizado por Hayline Vitória, com dramaturgia de Pedro Bertoldi, produção musical de Álvaro RosaCosta e direção de Silvana Rodrigues e Camila Bauer. Financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC-RS), esteve em temporada de 15 a 25 de abril e retornará em breve.
Acostumados ao bem festejado primeiro negro aqui, primeiro negro lá, a peça nos força ao impacto do que poderia ser o último. Contudo, o primeiro e o último se assemelham na transitória ou definitiva solidão do "único". Mais do que discutir o genocídio, ao trazer a hipótese da extinção, o drama propõe um novo pacto social no qual Dandara tenha sido a última mulher negra a ser considerada um artefato, porque as gerações dela advindas não mais o serão.
ELIANE MARQUES
Nenhum comentário:
Postar um comentário