
28 de Outubro de 2025
CARPINEJAR
Overdose de esquecimento
Em Ideologia, composição de 1988, Cazuza cantava que seus heróis morreram de overdose. Ele fazia alusão a uma série de ídolos que se despediram precocemente, no auge da carreira, por abuso de drogas - como a tríplice J do rock: Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison.
Com o advento das redes sociais e a transformação de cidadãos comuns em celebridades instantâneas e virais, com a aferição de importância pelo número de seguidores, com o encolhimento da audiência da televisão aberta e o crescimento do streaming e do YouTube, muitos artistas que alcançaram a glória analógica (capas de jornais e revistas, figurinhas recorrentes de programas de auditório e de entrevista) morreram no esquecimento. Experimentaram o doloroso e ingrato falecimento em vida.
Como não se adaptaram aos avatares ou sequer migraram para as novas mídias, seu público não se atualizou e perderam contato com as gerações mais jovens, tornando-se estrelas de uma constelação extinta.
Lembro-me de Norma Bengell, musa do Cinema Novo, referência obrigatória do teatro e das telas durante quatro décadas, intérprete de Tom Jobim, rosto internacional da cinematografia brasileira com Os Cafajestes (1962) e O Pagador de Promessas (1962). Partiu no anonimato, em 2013, aos 78 anos, mergulhada em dívidas que somavam R$ 4 milhões. Mantinha-se na base do favor e da caridade dos amigos. Conta-se que Milton Nascimento custeava seu plano de saúde.
Evoco ainda Francisco Di Franco, um dos galãs mais bonitos das novelas. Atuou na Globo, na Tupi e no SBT, marcado por encarnar Jerônimo, o Herói do Sertão (1972), e por representar Rodrigo Cambará em Um Certo Capitão Rodrigo (1971), filme inspirado na obra O Tempo e o Vento, do nosso Erico Verissimo.
Era uma personalidade requisitada para comerciais e anúncios. Não podia sair à rua sem ter sua roupa arrancada, provocando suspiros por seus folhetins.
Afastado da arte e da publicidade desde o fim dos anos 1980, Francisco conheceu a discrição e o veneno do ocaso em seus últimos anos de existência em São Bernardo do Campo (SP), prestando serviço na prefeitura local. Em seu velório, seis pessoas compareceram - apenas o suficiente para carregar as argolas do seu caixão.
O roqueiro lendário gaúcho Julio Reny, 66 anos, ex-radialista da Ipanema FM, atravessou o calvário de privações da transição de mundos - para entender sua estatura, recomendo ler a biografia Julio Reny: Histórias de Amor & Morte (Artes e Ofícios), de Cristiano Bastos, ou assistir ao documentário Amor e Morte em Julio Reny, dirigido por Fabrício Cantanhede.
O líder das bandas KM 0, Expresso Oriente, Cowboys Espirituais e Irish Boys - que enfeitiçava a cena underground com sua voz confessional, quase falada em certos momentos, traduzindo a melancolia, a urgência e a crueza urbana - apareceu, de repente, desesperado, com uma postagem online para vender seu violão.
Não se tratava de qualquer objeto, mas de seu meio de sobrevivência, seu único instrumento de trabalho: um Strinberg modelo Jumbo Folk, comprado há cerca de cinco anos, que se destaca pelo desenho de uma flor-de-lis. Foi com ele que gravou Confissões de Escobar e Sommeliers de Canções, ambos em parceria com Jeff Gomes.
Sustentado por uma pensão de um salário mínimo, o cantor revelou que, em razão de um problema de visão, sentiu-se encurralado por temer pelo bem-estar dos seus animais de estimação:
- Sem dinheiro para pagar as contas e alimentar meus gatinhos, eu estava disposto a passar fome. Mas os meus animaizinhos são inocentes e não merecem.
Uma rede de solidariedade com doações de seus fãs suspendeu o leilão e o aliviou, temporariamente, do aperto financeiro.
Quero acreditar na profecia do seu hino da noite porto-alegrense, Não Chores Lola:
"O coração partido não é o fim".
Que seja uma revalorização de seu legado com shows e homenagens, não somente uma compaixão passageira.
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